Ana Zanatti e Pedro Oliveira. ©Mundial Filmes

O Lugar do Morto, um dos melhores do cinema português

“O Lugar do Morto”, de António-Pedro Vasconcelos, (1984), filme que bateu todos os recordes de bilheteira e que durante muitos anos foi o maior êxito comercial do cinema português, regressou às salas para homenagear o seu realizador, um ano depois do seu falecimento. 

“O Lugar do Morto”, regressou às salas de cinema em cópia restaurada, na mesma semana em que se completa um ano sobre o falecimento de António-Pedro Vasconcelos e em este que faria 86 anos se fosse vivo. Durante várias décadas “O Lugar do Morto” — até o título é bem ‘esgalhado’ —, foi o maior êxito comercial e uma lufada de ar fresco do cinema português dos anos 80, que muitos recordam com saudade e como exemplo para conquistar o público e levá-lo às salas.

No panorama nacional da produção de filmes fala-se há muito, antes mesmo dessa feliz década de 80, ainda nos tempos do cinema novo português — algo que provocou algumas zangas e cisões, entre cineastas do grupo — da necessidade de se fazerem também filmes comerciais, mais dirigidos para o grande público; e por outro lado a opinião daqueles que dizem que só se fazem filmes — ainda por cima com financiamento público — para os amigos, a pensar nos festivais, razão pela qual os espectadores estão de costas voltadas para o cinema português. 

Os lugares com que nos identificamos

Na verdade, a produção nacional de cinema português, a ‘comercial’ — detesto estes termos, mas não encontro outro, para o definir— é quase sempre demasiado banal, às vezes até caricata, — a redundância e excesso de palavrões, procuram forçar a naturalidade — ao passo que a outra é por vezes demasiado pretensiosa e elitista, para o espectador comum. E até hoje infelizmente, tanto uma como outra levam muito pouca gente às salas de cinema.

O sucesso de “O Lugar do Morto” — diga-se também de outras películas da altura, como por exemplo o belíssimo “Duma Vez Por Todas”, (1987), de Joaquim Leitão e outros que se seguiram pelos anos 90 — assenta sobretudo, em algo que quase sempre tem sido esquecido no cinema português: uma boa história, ou melhor um bom argumento, que se desenvolve em ambientes que conhecemos ou que na generalidade nos identificamos ou conhecemos, bares (como o Procópio, com o barman, o Sr. Juvenal), hotéis, linhas de comboios, passagens de nível (de São João do Estoril), redações de jornais (A Capital, salvo erro) ou dentro de belos carros sport (como o Alfa Romeo Giuletta vermelho), parques de estacionamento das arribas praias da Marginal lisboeta, em direcção a Cascais. 

O Lugar do Morto
Ruy Furtado e Pedro Oliveira na redação do jornal. ©Mundial Filmes

Um thriller policial

Depois, tudo se enquadra numa narrativa do género policial, de uma investigação privada, quase sem polícias, absorvendo mesmo as características de um thriller hitchcockiano: uma mulher fatal e misteriosa, encontros e desencontros, estranhas coincidências, ambiguidades eróticas, suicido ou morte; além dos protagonistas serem figuras da televisão, bastante conhecidos do grande público, duas figuras da RTP— a única televisão no ar, na altura — jovens e bonitos.

“O Lugar do Morto”, tinha de facto todos os ingredientes necessários e à medida, para ser um filme de sucesso, inclusive um certo piscar de olho ao estilo americano de fazer filmes populares, rejeitando em grande parte todos os cânones da dramaturgia europeia e brechetiana, mesmo que faça uma crítica da sociedade — está de certo modo implícito, que a discussão deve-se à ‘saída do armário’, do morto (Luís Lima Barreto), um indivíduo da alta sociedade — e sobretudo do papel do jornalismo sensacionalista e dos meios de comunicação social, que é também um dos aspectos bastante interessantes do filme. 

Um mulherengo e uma mulher-fatal

Em “O Lugar do Morto”, o jornalista Álvaro Serpa (Pedro Oliveira), quando de madrugada descanasava dentro do carro num estacionamento à beira-mar, ouve gritos de um homem (Luís Lima Barreto) e uma mulher (Ana Zanatti), que discutem e agridem furiosamente. Ao fugir, a mulher pede auxílio e pega boleia no carro de Álvaro sem grandes conversas, mas desiste da fuga e pede para voltar ao local da briga. Porém lá, vai encontrar o homem com quem discutia, misteriosamente morto. Álvaro, que a acompanha no retorno ‘ao lugar do morto’ é um jornalista divorciado e mulherengo, com um filho pequeno e com uma vida amorosa bastante complicada.

Por isso, acaba envolvendo-se com essa mulher — numa das cenas mais softcore do cinema português, no capot do Alfa, algo que alimentou muitas fantasias na época — que continua a mostrar-se muito misteriosa sobre a sua vida e relacionamentos. Intrigado com essa mulher sensual que deu boleia e de certo modo protegeu, Álvaro decide não revelar a sua implicação à polícia e começa a investigar o caso por conta própria. Acaba afinal, enredado numa rede de mistério e sexo, devido a essa mulher, que nunca chegará verdadeiramente a conhecer e que o leva à perdição.

Vê o trailer de “O Lugar do Morto”

Um argumento consistente

O cinema português ao longo de décadas, tem sido muito pouco celebrado pelo seu próprio público. Muitas das críticas neste sentido, creio que são justas, assim como acontece em geral na cultura e nas artes — financiadas pelo Estado — que às vezes parecem apenas ser produzidas e destinadas às elites culturais ou para exportação internacional em festivais ou mostras. E nesse aspecto nada, contra os apoios públicos, pelo contrário, porque estes podem ser um precioso incentivo.

Porém, há de facto problemas estruturais graves na produção de cinema nacional, quase sempre relacionados com os argumentos, que são frágeis ou demasiado umbilicais em relação aos seus autores, realizadores e agregados. Outras vezes além de um guião demasiado literário, actores também não ajudam, declamando os diálogos e dizendo-os de uma forma que jamais diríamos no dia-a-dia comum.

O Lugar do Morto
Uma cena entre os dois protagonistas num comboio-restaurante da CP. ©Mundial Filmes

O segredo do sucesso

Em “O Lugar do Morto”, contracenam o então Pedro Oliveira, jornalista-repórter da RTP, e a atriz/apresentadora Ana Zanatti, a experiência televisiva deles parece ser fundamental, inclusive na forma natural como, conversam os diálogos e estão à frente da câmara de filmar de António-Pedro Vasconcelos. E isso é absolutamente notável! De facto, também temos de reconhecer que o realizador, conseguiu de um modo geral, atingir os seus objectivos de fazer como nunca um filme ‘à americana’, com um ritmo e uma dinâmica invulgares no nosso cinema e por isso conseguiu chegar ao grande público.

O argumento, está efectivamente construído de forma a prender o espectador até ao final, de certa forma imprevisível — há quem diga o contrário — e como um acaso do destino. Cerca de 41 anos depois da estreia de “O Lugar do Morto”, verificamos que infelizmente as matrizes e os elementos potenciais deste filme, não foram mais aproveitados e explorados por nenhum cineasta português — incluindo diga-se, pelo próprio António-Pedro Vasconcelos, embora se lhe reconheça sempre as intenções —, pois havia de facto algo que podia dar uma nova linha de orientação para o cinema português contemporâneo, apesar da tão propalada diversidade.

Dar mais tempo ao filme em cartaz

Recordo, que além deste filme notável do cinema português, António-Pedro Vasconcelos, uma figura incontornável da cultura e da sociedade portuguesa, foi autor de uma obra digna de reconhecimento, com vários outros filmes importantes, como “Jaime” (1999), “Os Imortais” (2003), “Call Girl” (2007), “A Bela e o Paparazzo” (2010), “Os Gatos Não Têm Vertigens” (2014) e “Parque Mayer” (2018), entre outros. Contudo, nunca nenhum conseguiu ser tão bom e ter tanto sucesso como “O Lugar do Morto”. De todos, “O Lugar do Morto” é talvez aquele que merece mais ser redescoberto, até como exemplo para os espectadores e os novos cineastas. Se eu fosse o programador da UCI Cinemas, depois do dia 12 e com a qualidade de uma cópia digital, manteria o filme em cartaz!

O Lugar do Morto
O Lugar do Morto

Movie title: O Lugar do Morto

Movie description: “O Lugar do Morto” é um intrigante thriller policial que segue essa história de um jornalista um tanto ingénuo e cheio de tiques de uma época em que o jornalismo de investigação estava no seu auge. Porém, acaba de uma forma pouco deontológica, por se envolver nesse misterioso ‘caso de homicídio’, logo após o desaparecimento dessa mulher, com quem acabou apenas por passar a noite. À medida que pretende limpar o seu nome, o jornalista vai caminhar para um mundo escuro de enigmas, segredos e morte.

Country: Portugal, 1984

Duration: 124 minutos

Director(s): António-Pedro Vasconcelos

Actor(s): Aba Zanatti, Pedro Oliveira, Teresa Madruga, Diogo Vasconcelos, Manuela de Freitas, Lídia Franco, Isabel Mota, Ruy Furtado, Carlos Coelho.

Genre: Thriler, Policial

  • José Vieira Mendes - 90
90

Conclusão:

“O Lugar do Morto”, de António-Pedro Vasconcelos tem como base um argumento generosamente inspirado no clássico ‘film noir’, um elemento que é potencializado, também, pela belíssima fotografia de ambientes quase sempre noturnos ou de madrugada. Mas também por algo raro nos filmes portugueses, que é uma extraordinária banda sonora composta por Alain Jomy, adicionando-lhe ainda um senso de humor popular da Lisboa da década de 80, inserindo nos diálogos toques debochados, que mostram grande naturalidade e ressaltam o aspecto de farsa e crítica social e aos media da época. A dada altura, o protagonista, que é um jornalista um tanto controverso, afirma sem remorso que o público irá sempre acreditar plenamente no que a imprensa defende, sendo verdade ou não. Mal sabia ele o que iria acontecer no futuro e no jornalismo da atualidade???

Pros

A história, os actores, a fotografia, e a banda-sonora e até para aqueles que se recordam, a promoção na RTP, a lançar as suas ‘estrelas’. Tudo se conjugou na perfeição para que o filme fosse um sucesso.

Cons

A previsibilidade de algumas situações e a densidade do carácter das personagens, podia ter sido mais aperfeiçoada. Mas não sei se os espectadores serão assim tão exigentes para ver um filme que no fundo é uma trama policial.

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