Parque Mayer, em análise
Três anos depois de ‘Amor Impossível’ (2015), o consagrado realizador português António-Pedro Vasconcelos regressou às salas de cinema com ‘Parque Mayer’, uma singela e nostálgica homenagem ao teatro de revista, aos seus heróis e artistas, e à sua luta dissimulada contra o salazarismo e o Estado Novo
Se os espectadores forem à procura de pura diversão, referências teatrais ou de uma comédia de costumes desbragada, imbuída de sketches do teatro de revista — uma forma teatral que aliás sempre foi muito mal-tratada pela chamada alta-cultura e considerada um sub-produto para entreter o povo — ‘Parque Mayer’, será certamente o filme errado a verem. Na verdade, o novo filme de António-Pedro Vasconcelos, escrito pelo seu habitual argumentista Tiago Santos, não é uma comédia ligeira — apesar de ter bons momentos de humor e bom sentido revisteiro — é um drama e um hino à liberdade que utiliza como pretexto o teatro de revista e o seu maior símbolo (O Parque…), para nos dar uma memória vincada e expressiva sobre o inicio do salazarismo em 1933. Essencialmente, trata-se de um filme sobre a construção dos mecanismos da censura, da discriminação e da repressão política do Estado Novo, então acabado de se formar constitucionalmente, à revelia do povo. É assim que diz a História!
O argumento de ‘Parque Mayer’ é bastante simples e até parece entrar um pouco no campo do discurso de telenovela e naquilo que o ‘povo gosta’. Mas não há mal nenhum nisso até porque o filme em primeira instância devolve-nos esse gosto por aquilo que é popular, mas com um sentido reflexivo e intencionalmente de apelar à memória. O filme passa-se durante a produção de uma peça de teatro de revista no Maria Vitória. Deolinda (Daniela Melchior), uma jovem provinciana — uma falhada pastorinha de Fátima, numa recorrência às famosas aparições, que bastante jeito deram ao regime salazarista — tem o sonho de ser artista. A rapariga que tem uma excelente figura e uma linda voz, apresenta-se num casting para coristas para uma nova estreia. Rapidamente e graças ao seu inegável talento a rapariga conquista todos, incluindo o empresário José (Miguel Guilherme), dono do teatro e um personagem controverso que tem de fazer um jogo de cintura, para fazer sobreviver o seu negócio. Durante os ensaios, a jovem starlette apaixona-se por Mário Pintor (Francisco Froes), o encenador, mas este está fascinado por Eduardo Gonzaga (Diogo Morgado), a estrela masculina da revista que, por sua vez, tenta a todo o custo seduzir Deolinda… Ao mesmo tempo, o Estado Novo começa a apertar o seu cerco e a liberdade de expressão está cada vez mais ameaçada. Num teatro do Parque Mayer e numa Lisboa hipócrita e repressiva, — são imensas as referências simbólicas aos velhos espaços da cidade e excelentes as reconstituições, bem como o guarda-roupa da época — há um pouco de tudo: amores não correspondidos, pequenos dramas pessoais e uma luta constante contra a censura, criando hábeis tentativas de a contornar, dando voz ao desagrado do povo (ou do Zé Povinho a figura de Columbano Bordalo Pinheiro). No entanto, o Parque Mayer esconde também segredos íntimos, perseguições políticas aos artistas defensores da liberdade, transformando-se numa espécie de microcosmos de uma Lisboa pequenina e de Portugal inteiro, onde a resistência à repressão se vai fazer através de um simples quadro da nova revista, numa sala cheia em que o público ovaciona de pé os artistas e o espectáculo.
TRAILER | ‘PARQUE MAYER’ DE ANTÓNIO-PEDRO VASCONCELOS
Na verdade, o teatro de revista sempre se assumiu na tradição liberal, que vinha do tempo da monarquia constitucional, através da sátira política e de costumes, herdeira ainda das velhas cantigas medievais de escárnio e mal-dizer, um dos fundamentos da cultura portuguesa. No entanto, esteve quase sempre sob a alçada da censura — é notável o trocadilho do Alçada da censura (Almeno Gonçalves) — e era controlada cirurgicamente pelo Estado Novo ao nível dos textos que eram ditos pelos actores. Os censores iam aos espectáculos, às ante-estreias, para ver se estava tudo em ordem e se nada era ofensivo à moral e aos costumes da doutrina do regime. Foi também a altura da formação e recrutamento dos ‘bufos’ e agentes da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), a polícia política anterior à PIDE. O filme revela ainda a grande hipocrisia do regime que não combatia a pobreza e a miséria, mas antes procurava escondê-la dos olhares público, dando uma ideia que estava tudo bem: os mendigos, os pés-descalços, eram apanhados na rua metidos em carrinhas abertas e levados para a Mitra, onde se misturavam com carteiristas, homossexuais — a homossexualidade era combatida como uma doença —, as prostitutas de rua, porque a prostituição era tolerada, desde que fosse em bordéis, como vemos no filme. Um dos grandes méritos de ‘Parque Mayer’ é ainda o facto de não haver muitos filmes portugueses que abordem directamente o Estado Novo embora haja ainda muitas histórias para contar, sejam elas em tom de comédia ou drama, como ‘Operação Outono’, de Bruno de Almeida. Neste caso, o realizador António-Pedro Vasconcelos usou muito bem o teatro de revista e até com um certo sentido de oportunidade e actualidade, para formar a ideia de como rapidamente ainda hoje se pode instalar uma ditadura e todos os seus mecanismo de repressão.
O filme assenta ainda numa necessidade de encontro com a cultura popular, mas também com uma certa melancolia do passado de espaços perdidos, alterados ou praticamente abandonados da cidade de Lisboa, como precisamente o Parque Mayer, que os diferentes poderes públicos têm oscilado em decidir o que fazer devido à especulação imobiliária e à óbvia valorização daquele espaço no coração da cidade de Lisboa. É evidentemente que o filme é uma homenagem a esse espaço público — que tarda em ser revitalizado apesar da recente reforma do Capitólio — , onde se conseguia (e consegue ainda) respirar liberdade, onde muitas das piadas que os actores diziam só o público as entendia. Mas é igualmente e por extensão uma elegia ao cinema português: foram esses mesmos actores e autores saídos e formados na revista que deram origem, — o corpo e a voz — àquilo que se chamou o cinema de comédia à portuguesa dos anos 30 e 40, que nasceu com ‘A Canção de Lisboa’, de Cottinelli Telmo, precisamente em 1933 e depois com outros tantos filmes como ‘O Pátio das Cantigas’, ‘O Leão da Estrela’, ‘O Costa do Castelo’, que apesar de tudo são glórias do cinema português, ainda hoje são muito apreciados pelos espectadores e que sobreviveram aos 48 anos do regime.
Para além de se saudar em ‘Parque Mayer’ essa recuperação de referências à comédia portuguesa no geral — no cinema e no teatro — destaque-se ainda o excelente registo de actores como Francisco Froes, como um dos protagonistas e, as menos felizes interpretações de Diogo Morgado, num registo quase sempre demasiado exagerado mesmo para o papel do ‘canastrão’; e talvez se note um pouco a falta de experiência da jovem Daniela Melchior em Deolinda. Quanto aos actores secundários o brilho vai para as interpretações de Miguel Guilherme, no papel do José, empresário do teatro, Almeno Gonçalves, no ‘expressivo’ Alçada da Censura, Tiago Rodrigues, o actor-Director do Teatro Nacional D. Maria II, que nas suas escassas aparições tem uma presença enorme que dá credibilidade ao sinistro personagem; e por último que bom ver Alexandra Lencastre, interpretar a belíssima e sedutora madame do bordel. ‘Parque Mayer’ é sem ser uma obra-prima um filme muito interessante que merece ser visto por todos os espectadores de todas as idades. Trata-se pois de uma genuína e sincera viagem pela cultura portuguesa — também contemporânea já que Deolinda remete igualmente para uma das bandas de música popular e para a excelente banda-sonora de José M. Afonso — e pelas memórias da nossa história recente. E é também um misto de diversão e drama sobretudo para dar conhecimento às novas gerações daquilo que foi o Parque Mayer e os anos da ditadura. Para que a memória não se apague!
Parque Mayer em análise
Movie title: Parque Mayer
Date published: 8 de December de 2018
Director(s): António-Pedro Vasconcelos
Actor(s): Francisco Froes, Daniela Melchior, Diogo Morgado, Miguel Guillherme, Almeno Gonçalves, Tiago Rodrigues, Alexandra Lencastre
Genre: Drama, 2018, 134 min
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José Vieira Mendes - 70
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Rui Ribeiro - 88
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Inês Serra - 85
CONCLUSÃO
‘Parque Mayer’ é uma emocionante homenagem ao teatro de revista, à comedia portuguesa dos anos 30 e 40 e a todos os artistas que nesse tempo lutaram pela Liberdade. António-Pedro Vasconcelos procura reencontrar ainda e novamente com simplicidade e muita sensibilidade, um cinema enraizado no imaginário popular que agrade a todos os espectadores e a todas as idades.
O MELHOR: A intenção de revelar as memórias do Parque Mayer numa excelente reconstituição de época no argumento e diálogos;
O PIOR: O ‘overacting’ de Diogo Morgado que tem tudo a ganhar se for mais contido nas suas interpretações, sobretudo nesta de um ‘canastrão’.
JVM
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Digno de Fazer Parte do PLANO NACIONAL de Filmes
Este é daqueles filmes que várias gerações que nasceram depois do 25 Abril, deveriam ser convidadas a conhecer…
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Uma revista num teatro do Parque Mayer nos anos 30, apenas com telão, sem cenários? Hmmm… Senhoras chiquíssimas indo à (ante-)estreia duma revista, como se fossem ao São Carlos? Hmmm… Nem nos anos 30, nem 40, nem por aí adiante… Gente nitidamente da alta burguesia (nota-se pelos figurinos) batendo palminhas e cantando o refrão de uma canção sobre uma sardinha? Hmmm… Usava-se a expressão “um par de dias”, nos anos 30, querendo dizer-se “alguns dias” (fala de Eduardo Gonzaga)? Hmmm… Nos anos 30, levantava-se o polegar, dando a entender que tudo estava (a correr) bem? Hmmm… Quanto à crítica aqui apresentada pelo gestor da página (e passemos em claro a displicente pontuação e a deficiente sintaxe, surpreendentes em quem tem tão elevada formação académica ), uma personagem que impede que um homem obrigue uma jovem a prostituir-se é “sinistra”? Claro que o meu texto não será publicado, apesar de nele nada haver de ofensivo. Quase um século depois a censura continua a existir…