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Poeta, em análise

Darezhan Omirbayev introduz  “Poeta” ao público português, uma obra protagonizada por Aida Abdurakhman e Klara Kabylgazina.

RESISTÊNCIA POÉTICA

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Poeta
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Logo a abrir, AKYN (POETA), 2021, realizado por Darezhan Omirbaev, um dos mais proeminentes cineastas da República do Cazaquistão, dá-nos uma sequência de planos que acompanham o lento despertar do dia. No interior de uma casa, a progressiva invasão da luz solar ilumina o corpo e o rosto dos que ainda dormem, anunciando uma nova manhã redentora onde, por contraste, uma única personagem se mantém acordada. Estamos a falar do protagonista, o jovem Didar (Yerdos Kanaev), que na simples casa onde habita com a família escreve poesia num singelo bloco de notas. Nada de computadores, antes escrita manual que segue de forma clássica a linha de pensamento e inspiração do poeta. No plano final iremos regressar a uma mesma visão pacífica e poética, nesse caso ao plano próximo de uma mãe deitada ao lado do seu muito jovem filho, ambos a dormir no interior de um comboio embalados pelo ritmo do movimento na ferrovia que se faz ouvir e que se prolonga pelo genérico. Mãe e filho, mais uma vez iluminados pelo Sol, seguem para um destino não identificado. Para onde irão, perguntarão alguns? Para algum lado será, dirão outros, sobretudo os que ainda acreditarem no poder da poesia que não precisa de respostas concretas para ser, isso mesmo, poesia. De facto, neste filme iremos do primeiro ao derradeiro fotograma cruzar com frequência o nosso pensamento com a luta, por vezes desigual, entre o domínio das emoções, da subjectividade espiritual, e a redutora materialidade da sociedade contemporânea que, ano após ano, parece mais igual, seja aqui ou em qualquer lugar, fruto de uma desvairada e a maioria das vezes imposta globalização, que afecta sobretudo o que havia de específico e único no comportamento e na cultura dos povos. Nesta viagem pessoal, Didar será o nosso cicerone, o nosso companheiro e cúmplice. Será através dele e do seu olhar que daremos conta das potencialidades e dos limites da sua opção de vida, ser poeta num mundo que o empurra, nos seus percursos pela cidade e pelo país, para atmosferas que se perfilam agrestes, enganadoras. Numa das deslocações que faz para recitar poesia fora da grande cidade onde vive, não a capital mas a mais populosa Almaty, Didar encontra numa sala, capaz de albergar largas centenas de pessoas, apenas uma rapariga que veio de propósito para lhe dizer como a sua obra poética mudou o rumo da sua vida. Não por acaso, num dos cartazes de POETA podemos ver essa mulher solitária, voltada não para o palco mas para a objectiva que a fotografa como que surpreendida na imensidão daquele espaço. No entanto, no filme, o realizador com alguma ironia acrescentou a esta presença e ao seu inesperado depoimento a parca presença das poucas autoridades locais que haviam convidado o poeta, nitidamente para cumprir um caderno de encargos de rotineiras iniciativas culturais, mesmo que para isso o orçamento fosse reduzido ao ponto de não poderem pagar a estadia num hotel ao protagonista. Esta será, aliás, uma das sequências mais cáusticas de POETA, uma das mais realistas e críticas ao sistema capitalista que grassa no Cazaquistão, desde que em 1991 passou a ser uma república independente da antiga União Soviética. Para quem não saiba, aqui ficam alguns dados que importa salientar: trata-se de um dos maiores países do mundo, localizado na Ásia Central, com uma parcela a oeste do Rio Ural que se encontra já na Europa. Não possui costa marítima. Faz fronteira com a Federação Russa, a República Popular da China e as repúblicas do Quirguistão, Uzbequistão e Turquemenistão. Habitam nele uma centena de etnias, e o islamismo, maioritário, convive com o cristianismo numa proporção que se pode estabelecer entre 75% contra 21%. O idioma cazaque possui o estatuto de língua oficial, mas o russo continua a ser usado em especial ao nível administrativo e institucional. Não pretendo dar lições de geografia nem de demografia. Apenas saliento factos que me parecem decisivos para compreender melhor o povo cazaque e o contexto em que ele se insere, por conseguinte, para seguir com mais e melhor atenção aquilo que iremos ver e ouvir ao longo deste muito interessante projecto cinematográfico.

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Mas POETA não se limita a reflectir sobre a poesia e o lugar do poeta no presente, para além do papel da própria literatura e daqueles que se formam e informam na leitura dos livros. Para o cineasta, os homens e mulheres que assim defendem a sua expressão verbal e cultura quase que podem ser considerados uma espécie em extinção. De igual modo, a personagem Didar sente na pele as agressões de uma realidade cada vez mais materialista onde as pessoas são esmagadas ou simplesmente contaminadas pela futilidade das redes sociais e do consumismo electrónico. Por isso não deixa de combater e alterar o que pode subverter, para com a sua resistência poética gerar um lugar que sirva ainda para o acto de sonhar, algo que suspeita que já ninguém procura, necessidade existencial de que poucos sentem a falta. Na verdade, o autor não quis reduzir a sua obra a uma expiação das dores de viver numa modernidade feita de plástico que, mesmo quando a rejeitamos, parece renascer a cada esquina. Não, Darezhan Omirbaev decidiu introduzir na narrativa uma história paralela e pretérita, a de um outro poeta, Makhambet Otemisuly, uma figura histórica e politicamente empenhada, que por confrontar o poder do Sultão acabou executado pelos seus esbirros no ano de 1846. O seu corpo, decapitado, foi enterrado no solo da mesma estepe onde sinistros cavaleiros exerciam a repressão dos actos de rebelião contra o Khan local e os lacaios ao serviço do colonialismo da Rússia Imperial. Em 1966, em pleno período soviético, a sua campa foi encontrada e identificada por um homem que em criança fora encarregado pelo pai de preservar a memória daquele poeta guerreiro. Depois, os seus restos mortais foram levados para Almaty, onde um artista deveria a partir deles esculpir um busto para uma estátua que o devia perpetuar. No entanto, só anos depois se lhe prestou a devida homenagem com a construção de um mausoléu em Karaoy, monumento que iremos ver nesta obra e para onde somos convidados a entrar através de uma porta que, simbolicamente, se encontra aberta e agitada num lento balancear provocado pelo vento que passa. No interior e nas paredes podemos ler, gravadas na pedra, estas palavras imortais: “Querido Rio Ural, Irei ver-te do meu cavalo, Ouve a música dos passos deles, Podemos montar na sela para a guerra. Sou um velho machado que ficou rombo, Quando o amolador me encontrar, Ficarei novamente afiado. Selar um cavalo para a guerra, Com uma lança afiada na mão, Até a sua cabeça ser uma caveira, O seu dever não estará terminado! Lutámos pelo Volga, Tornámo-nos amigos no Ural, Resistimos pela nossa terra, Não traímos a liberdade pelo ouro. Tornozelo enterrado na areia, Puxamos a nossa carga com bravura, Apenas um camelo seria bem-sucedido. Pensem nisto, camaradas, Este mundo traiçoeiro, Nenhum homem o poderia conquistar”. Poema que sublinha a necessidade de resistir ao brilho das quimeras douradas, aos compromissos que quando menos se espera nos vergam. Poema que nos diz para recusarmos conspurcar a liberdade, a dignidade e a independência do espírito. Todos conceitos que o antigo poeta podia partilhar com o moderno poeta Didar. Este último, numa breve sequência de planos que antecede a visita ao Túmulo de Makhambet Otemisuly, irá recusar ser o escriba oficial de um empresário que lhe encomendara uma biografia elegíaca. Recusa essa que serve para nos confirmar aquilo que desde sempre ficou claro. O poeta das imagens e dos sons Darezhan Omirbaev, esteve sempre ao lado dos que lutaram e continuam a resistir, material ou poeticamente, por um novo e mais saudável modelo de vida, por um pensamento justo e solidário.

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Poeta, em análise
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Movie title: Akyn

Director(s): Darezhan Omirbayev

Actor(s): Aida Abdurakhman, Klara Kabylgazina, Yerdos Kanaev

Genre: Drama, 2021, 105min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: Em 2021 recebeu, no Festival Internacional de Cinema de Tóquio, o Prémio para a Melhor Realização.

E em 2022, no LEFFEST – LISBON & SINTRA FILM FESTIVAL, recebeu o Prémio do Júri para o Melhor Filme.

Para além do mais, saliento o puro prazer cinéfilo de constatar que o cinema está vivo e recomenda-se naquelas paragens do Cazaquistão, país que faz parte das geografias que não são frequentemente bafejadas pela distribuição cinematográfica a nível local ou internacional. Neste contexto, destaque para a LEOPARDO FILMES e para a MEDEIA FILMES que, mais uma vez, nos proporcionaram uma alternativa de visionamento credível e de inegável valor artístico face ao panorama algo rotineiro da maioria das estreias em sala, e não só. Mesmo assim, não nos podemos queixar esta semana. Para além de POETA, estreiam REGRESSO AO PÓ, de Li Ruijun (ALAMBIQUE FILMES), ANNIE ERNAUX – OS ANOS SUPER 8, de Annie Ernaux e David Ernaux-Briot (MIDAS FILMES), MEMÓRIAS DE PARIS, de Alice Winocour (OUTSIDER FILMES), e naturalmente a mega-estreia da mega-produção AVATAR: O CAMINHO DA ÁGUA, distribuído pela NOS AUDIOVISUAIS.

Se fosse sempre assim, não seria nada mau.

CONTRA: Nada.

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