"A Queda do Céu" | © Aruac Filmes

A Queda do Céu, a Crítica | Em luta contra a desflorestação no Doclisboa

“A Queda do Céu” de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha é uma das obras essências nesta edição do Doclisboa. O filme segue uma tribo amazónica e sua luta, sua resistência face às iniciativas de desflorestação que ameaçam destruir a sua terra, a cultura e a comunidade.

O modo como um filme começa diz-nos muito sobre as suas intenções e estratégias, aquilo que quer ser e o tipo de experiência que quer apresentar ao espetador. No caso de “A Queda do Céu,” somos imediatamente confrontados com um teste de paciência em jeito observacional. Uma câmara fixa considera a paisagem florestal, captando o avançar de uma tribo nativa amazónica na paisagem. Começam lá longe, figuras distorcidas pela ondulação do ar quente, quase abstratos. Mas, há medida que caminham na direção da câmara, concretizam-se as formas e individualizam-se as pessoas em cena. No mesmo compasso, o som natural e humano cresce, como se ouvíssemos o afinamento de uma orquestra antes do concerto.

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São sete minutos disto, ininterruptos, sem corte ou texto a contextualizar o que vemos. Cabe a cada membro do público aceitar as demandas dos cineastas neste momento. Ora se entregam ao exercício, se deixam imergir nesta etnografia envolvente cuja sonoridade parece abraçar-nos com força titânica. Ora resistem à força que os puxa para o grande ecrã, ficando-se distantes, longe do filme e das vidas nele retratadas. Em certa medida, mais do que um teste de paciência é um teste de confiança. Não se pergunta se a audiência é capaz de apreciar o obra, mas se estão ou não dispostos a fazê-lo nos termos presentes. Sente-se confrontação, uma provocação uma voz cinematográfica a impor a sua visão, sem compromisso ou negociação. Também se denota uma negação do documentário mais convencional e seus vícios.

Um filme em confronto e cheio de urgência.

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© Aruac Filmes

Aqui reina um olhar aliado à terra e à gente que vive em comunhão com ela, iguais perante o mundo natural ao invés de conquistadores num modelo colonialista. De facto, todo o projeto parte de uma descolonização da perspetiva cinematográfica em prol de uma proximidade formal para com a população nativa. Um povo cuja cultura, cuja mera existência, está em constante conflito com uma modernidade nascida da violência Europeia sobre terras distantes. No corte com aquele primeiro plano, note-se como somos colocados no lugar da gente Yanomami, também conhecida como Ianomâmis. Miram-se os céus enquanto, na banda-sonora, a voz humana partilha histórias ancestrais sobre a abóbada celeste que nos junta a todos sob a sua alçada.

Depois disso, somos levados para o quotidiano da comunidade, onde a montagem privilegia a curiosidade de uma câmara que procura integrar-se entre a gente sem demarcar em demasia o artifício cinematográfico. A forma documental é jamais negada, pois isso seria mais falso e ilusório. De facto, o equilíbrio entre essas ideias culmina em passagens mais perto da conversa do que da entrevista, passando a palavra aos líderes da tribo enquanto porta-vozes num ato de partilha entre a sua gente e a audiência. A encenação do formato “talking head” é excisado, pois claro, salientando ainda mais essa busca pela imersão cinematográfica. Ao invés de impor um olhar forasteiro sobre os Yanomami, “A Queda do Céu” procura noções de igualdade entre os criadores do filme e seus sujeitos, entre quem vê e quem é visto. A exotização não tem lugar aqui.


Francamente, não podia ser doutra forma, sendo a fita baseada num livro escrito em colaboração do xamã Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert. E partindo daí, também a obra não se podia restringir a observação pacata sem um forte discurso político a acompanhar. É isso mesmo que os cineastas Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha trazem a esta “Queda do Céu,” articulando uma celebração no precipício da etnografia com as tensões sociopolíticas subjacentes a todo esse modo de viver. Em certa medida, o filme torna-se numa tese e num discurso eloquente sem ser panfletário, uma chamada de atenção e grito de fúria. Também será um grito de guerra, com os Yanomami manifestos em defesa da paisagem que outros tentam destruir.

Assim, “A Queda do Céu” junta-se a outros filmes sobre a desflorestação no Brasil, o avançar de um progresso apocalíptico e a resistência das comunidades indígenas em oposição à exploração mercenária de quem vem de fora. O que separa a fita desses companheiros cinematográficos ou algo mais lírico como os trabalhos recentes de João Salaviza é aquele confronto da abertura e a centralização da perspetiva Yanomani. Faz-se franqueza fílmica sem negar o potencial para a poesia, para passagens de rito noturno em jeito de poema audiovisual. No entanto, há que manter todo o edifício cinematográfico num registo com os dois pés assentes na terra, com um olho apurado para a espiritualidade e para o além, para a crença dos intervenientes sem deixar degradar o propósito ativista da peça.

Celebra-se o cinema da resistência.

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A exultação da cultura é também ela uma forma de resistência, mais uma arma na luta pela santidade da floresta, da montanha, da comunidade. Em oposição fica o horror fora de cena, a indústria da madeira e da agricultura insustentável, os ditames de políticas de direita sem respeito pela Natureza que, para eles, será só um recurso a explorar em negação da sua finitude. Ouvem-se vozes da rádio e, num momento memorável, a árvore em queda, decepada em nome do capital. Também há a lanterna e o fumo, uma sequência aterradora em que o filme pede auxílio à filmagem de arquivo para mostrar glaciares colapsados entre os muitos cataclismas que o Homem traz ao planeta com seus epítetos vorazes, de ganância e ódio.

Dito isso, há que reconhecer a qualidade de “A Queda do Céu” enquanto obra cinematográfica, além das suas propriedades políticas. Afinal, este é um feito magistral de ritmo e preceito fotográfico, a começar com aquele plano primeiro e continuando a impressionar. Quer seja noite ou dia, a multidão ou os matizes de cor no fumo que emana da fogueira, a fotografia de Rocha e Bernard Machado é milagreira, capaz de capturar a beleza natural sem cair no erro de idealizações. O trabalho de som – responsabilidade de Guile Martins, Marcos Lopes e Toco Cerqueira – é tanto ou mais monumental e é fulcral para as muitas passagens em que a câmara fita algum fenómeno natural, incluindo a presença humana através do ruído fora de cena e não da imagem. A montagem de Renato Vallone é, por seu lado, um jogo entre a espera e o frenesim, arriscando notas ousadas no ato final da obra.

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Desse jeito, vemos como “A Queda do Céu” é um cinema em prol da política radical que, na sua mesma forma, demonstra a audácia do radicalista. Também usa esses elementos para unir ser humano ao seu ambiente, para esbater a linha que nos separa da Natureza que tantos de nós estamos ativamente a destruir. Não há maneira do espetador permanecer passivo, perdido em inações, face a tal documento.

O Doclisboa decorre de 17 a 27 de outubro. Não percas a nossa cobertura.

Doclisboa '24 | A Queda do Céu, a Crítica

Movie title: A Queda do Céu

Date published: 25 de October de 2024

Country: Brasil

Duration: 110 min.

Director(s): Eryk Rocha, Gabriela Carneiro da Cunha

Genre: Documentário, 2024

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

A montagem delineia a colisão de ideias, explosões concetuais em grande ecrã. A imagem puxa-nos para o envolvimento numa comunidade observada sem exotismos erróneos. Por fim, o som exulta a emoção e o instinto primordial, servindo para elevar “A Queda do Céu” às antípodas do mais glorioso cinema político. O trabalho de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha com base nos escritos de Davi Kopenawa e Bruce Albert assim se assume como um dos filmes mais essenciais de 2024. Com a sua mensagem ambientalista e mentalidade anticolonial, é também uma das mensagens mais urgentes que o cinema contemporâneo tem para dar.

O MELHOR: O desafio implícito no primeiro plano da fita, sua confrontação e o modo como imediatamente nos propõe a perspetiva indígena como parte fulcral do exercício cinematográfico.

O PIOR: Quem procura o cinema documental enquanto ferramenta educativa poderá ter problemas com “A Queda do Céu.” O filme reflete sobre assuntos sérios, mas raramente dá informações básicas sobre os mesmos. Temos de estar já educados para dialogar com as ideias propostas.

CA

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