Queer Lisboa ’23 | Opponent, a Crítica
“Opponent,” também conhecido como “Motståndaren,” foi a obra escolhida para representar a Suécia nos Óscares, concorrendo ao prémio para Melhor Filme Internacional. Este drama assinado por Milad Alami, conta com o fenomenal Payman Maadi no papel principal e teve a sua estreia mundial no Festival de Berlim. Chegado ao 27º Queer Lisboa, “Opponent” conquistou o júri e os espetadores. A audiência votou-o campeão do Prémio do Público, enquanto Alami teve direito a uma Menção Especial na Competição de Longas-Metragens.
Tudo começa numa brancura que quase cega, com sons de corpos em esforço a fazerem-se ouvir. Sem o vermos, sentimos a invocação de um ginásio quando uma voz interrompe o jogo de abstrações sónicas. Uma qualquer figura autoritária está à procura de Iman. O que é que se passa? O que é que ele fez? Não sabemos, ainda constritos a um ecrã vazio. É então que a ausência de imagem se dissipa, um corte brusco para o homem em fuga, correndo pela vida enquanto a câmara o segue, quase aos trambolhões, numa perfeita síntese de aflições. O realizador Milad Alami permanece no take comprido, quase plano sequência, perscrutando este pesadelo.
O medo inflama o ecrã, enquanto Iman se esconde atrás de uma árvore, observando das sombras como os polícias forçam outro homem a entrar no seu carro. Neste terror, um outro indivíduo repara no nosso fugitivo e começa logo aos gritos, chamando pela polícia. Terá sido este sujeito quem delatou? Será ele a causa disto tudo? As perguntas ficam por responder num acesso de fúria, terminando o prólogo com sangue e silêncio. No píncaro do pânico e da fúria, Iman ataca aquele que, há pouco, era um colega, talvez até um amigo – a traição não se perdoa quando a vida está em risco. O sobressalto cessa, por fim, e a história de “Opponent” pode começar.
Corta para a paisagem gelada, um continente além, onde lobos patrulham a paisagem, renas e cabras procuram refúgio entre os humanos, tanto do frio como dos predadores. Esta tundra é o Norte da Suécia e é aqui que Iman, sua esposa e duas filhas estão procurando uma nova chance, longe da pátria iraniana. Não que a Escandinávia seja particularmente hospitaleira, o pedido de asilo ciclicamente rejeitado através de advogados que nem se dignam a encontrar, cara a cara, com os clientes. O abrigo para refugiados é outra indignidade, os quartos numa constante rotação que não permite criar raízes ou sentir qualquer noção de lar ou conforto.
Algumas das passagens mais marcantes de “Opponent” capturam a cara de verdadeiros refugiados na Suécia, montagens de retratos com olhos na confrontação frontal com a câmara. Também poderosos são os momentos em que se explora a vida de sítios definidos como não-lugares, para passagem. Só que eles acabam sempre por se tornar repositórios de memórias, marcados pelas pessoas que neles habitaram. Em estudo de quarto, vemo-lo sempre do mesmo ângulo, enquanto os habitantes mudam, a saída violenta de alguns e a despersonalização contínua do espaço. É um assombro capaz de tornar o resíduo deixado por autocolantes na parede num poema desolador.
Sem sair do registo realista, Milad Alami usa a câmara para infetar estes cenários com a subjetividade sôfrega das personagens, reais e fictícias. Note-se como o uso de grandes angulares e lentes esféricas torna o quarto de família ainda mais claustrofóbico, os limites do enquadramento meio desfocados como que se precipitando para o oblívio. Composições bifurcadas definem a distância entre marido e mulher ou, noutra ocasião, quão desconexo Iman está da paisagem sueca que o rodeia. Contudo, a máxima expressão desse formalismo afiado ocorre no fulgor do combate Greco-Romano.
Acontece que, no Irão, Iman era um desportista de calibre olímpico e, no desespero para consolidar o pedido de asilo, ele volta ao ringue para combater pela Suécia. Mas Maryam, sua esposa, não está contente com a decisão. Ela sabe mais do que conta, nunca engolindo a mentira que o marido palreia para as autoridades – que a perseguição teve origem num rumor que ele tinha estado em manifestação contra o governo. Bastam uns momentos nesses templos de corpos suados para que tudo fique claro sem que nenhuma das personagens quebre o silêncio. O desejo é óbvio no olhar de Iman, e todo o engenho cinematográfico segue o exemplo.
A câmara explora as possibilidades homoeróticas do desporto a seu belo prazer, celebrando a carnalidade do gesto com a violência de um castigo divino. Pele suada e braços em tensão, pernas que se enrolam à volta de torsos, tudo no precipício de uma resolução derrota que mais valia ser orgasmo. Uma cena de massagem parece pornografia abstrata, toques levados ao rubro e os sons da carícia e do coração palpitante a tomar a banda-sonora de assalto. Enfim, o saturnino Iman resiste à tentação, mas é difícil não se render quando há tanto fruto proibido em seu redor. Um novo colega feito amigo só vem complicar a situação ainda mais.
Apesar de ser meio inerte enquanto drama, “Opponent” vive nestas tensões sufocantes, definindo-se enquanto estudo da personagem trágica. O uso e abuso de grandes planos fincados na cara do ator principal atestam a isso mesmo, revelando quanto Alami está dependente do seu intérprete. Felizmente, Payman Maadi, grande estrela do cinema independente iraniano, é uma presença formidável o suficiente para sustentar todo o projeto. Vê-lo confrontar ódios próprios e medos internalizados, vergonha e fúria, a violência de um patriarca perdido em mentiras e as lágrimas de um marido desesperado, é um espetáculo humanista, desafiador.
Quase dói olhar para a tragédia de Iman, emoção virada reação visceral. Queremos fugir deste conto em espiral de angústia e, quando vem fogo e fuga familiar, mais vale cair de joelhos no cinema e pedir aos céus alguma misericórdia. Mas não será só para estas figuras no ecrã – pensamos nas multidões que elas representam. Chegadas as últimas cenas, a ânsia não alivia, muito pelo contrário. Afinal, esta pode ser conclusão para o filme “Opponent,” mas não é o final da história de Iman ou até de Maryam. Consumidos pelo silêncio, pelo segredo, seu inferno vai continuar, a felicidade fora do alcance sem que o seu fado seja culpa do indivíduo. Um sistema impõe a mentira, corrói o espírito e consome a esperança. Um sistema que está à porta, chamando por Iman – a estrutura do filme um círculo fechado.
Opponent, em análise
Movie title: Motståndaren
Date published: 30 de September de 2023
Director(s): Milad Alami
Actor(s): Payman Maadi, Marall Nasiri, Björn Elgerd, Ardalan Esmaili, Arvin Kananian, Alexandro Soltani, Maria Norgren, Filip Slotte
Genre: Drama, 2023, 119 min.
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Cláudio Alves - 75
CONCLUSÃO:
Examinando a crise dos refugiados num contexto sueco e de uma perspetiva queer, o realizador Milad Alami constrói um drama em jeito de combate entre corpos que recusam o toque – Iman e Maryam, cada um na sua mentira. Desesperante e muito comovente, este é um estudo de personagem complexo, apoiado em mais uma grande prestação de Payman Maadi. A elegância da forma também ajuda, com a câmara, montagem e sonoplastia sempre prontos a celebrar os epítetos do sentimento – seja carnalidade ou angústia.
O MELHOR: As passagens onde se pensa sobre espaços de passagem, retratos de refugiados, e memórias perdidas numa casa congelada no tempo.
O PIOR: O filme é demasiado comprido e repetitivo. Sua história define-se pela paralisia das personagens num limbo burocrático, mas isso não significa que todas as tonalidades da fita tenham de lhe seguir exemplo.
CA