Queer Lisboa ’22 | Always on Sunday + Nunca ao Domingo
“Always on Sunday”, curta-metragem de 9 minutos baseada na fita de Jules Dassin ,“Never on Sunday” ou “Nunca Ao Domingo”, teve direito à sua primeiríssima exibição comercial em Portugal na Cinemateca, a 19 de setembro. É um trabalho do largamente desconhecido coletivo Gay Girls Riding Club, realizado por Connie B. DeMille (Ray Harrison).
O coletivo Gay Girls Riding Club (G.G.R.D.) teve grande preponderância na cena underground gay de Los Angeles nas décadas de 60, 70 e 80 e, para além da promoção de espetáculos de transformismo e muitas outras iniciativas, foram responsáveis, nos anos 60 e 70, pela realização de sete filmes caseiros que homenagearam e parodiaram – em igual medida – as obras cinematográficas que lhes serviram de inspiração.
A 26ª edição do Queer Lisboa, em conjunto com a Cinemateca Portuguesa, programaram, na sua Retrospetiva, não só as obras que inspiraram o trabalho do coletivo irreverente como as cinco narrativas de paródia que sobreviveram ao teste do tempo. Uma delas foi precisamente “Always on Sunday” (1962), que se baseia numa longa-metragem grega lançada apenas dois anos antes – “Pote tin Kyriaki“, “Nunca ao Domingo”.
Uma vez mais, tal como fora verdade com a sua derradeira obra final, “All About Alice”, o G.G.R.D apropriou-se de uma história já de si repleta de elementos notoriamente camp e elevou-a a ainda mais camp – leia-se: ainda mais exagerada, barulhenta, acrescentando-lhe innuendo sexual bem mais explícito e trocando-lhe as voltas no que diz respeito às expectativas de papéis de género (como aliás tem sido sempre a “função” da arte drag).
“Nunca ao Domingo”, comédia romântica grega lançada em 1960, e o primeiro filme não-americano a vencer um Óscar por Melhor Canção Original, pela sua viciante balada, é um hino aos bons vivants e uma provocadora ode aos prazeres da carne e à indulgência que rejeita os esforços intelectuais no sentido de domar tais impulsos. É divertido, explosivo e por vezes idiótico, mas é acima de tudo alegre e repleto de vida e por isso não é de estranhar que tenha sido apropriado pelo coletivo G.G.R.D para a criação da sua pequena paródia.
Melina Mercouri tornou-se um sex symbol nos Estados Unidos, já na casa dos 40, com este seu papel de Ilya (tendo inclusive sido nomeada ao Óscar de Melhor Atriz, com o filme a seguir ainda com indicações para Realização, Argumento Original e Guarda Roupa). A sua Ilya é uma visão que enfeitiça a película com particular gravitas, do início ao final do filme, com graça e com brilho, e stardust em quantidades desmedidas.
Em “Nunca Ao Domingo”, Mercouri, que ocupou relevantes cargos políticos ao longo da sua vida, nomeadamente o de Ministra da Cultura na Grécia (a primeira mulher a fazê-lo), é uma força capaz de fazer mover a narrativa, ao servir de musa para o realizador e argumentista (e também seu marido), Jules Dassin.
Mercouri, uma embaixadora da cultura grega por excelência e importantíssima figura no seu país, é aqui Ilya, uma prostituta grega que recusa deitar-se com qualquer homem. Apenas ela escolhe os seus clientes e dita o seu preço, está livre de proxenetas e é demarcadamente mais emancipada do que todas as outras prostitutas do idílico porto de Piraeus. Os marinheiros vão e vêm, Ilya é desejada por todos, tem inúmeros clientes regulares e não conhece vergonha. É bela e hedonista, generosa e bem-humorada. Nada na sua profissão a deixa inibida ou a sentir-se menos do que qualquer outra pessoa e a sua auto-determinação é refrescante – em 1960 ou agora.
Isto até chegar a Piraeus Homer Thrace (Jules Dassin, o realizador e ator que co-protagoniza o filme ao lado da sua musa), um americano letrado, grande estudioso dos clássicos gregos e que de imediato se vê encantado por Ilya.
Ao descobrir que Ilya é uma prostituta, Homer decide “salvá-la” e acaba por prometer dar-lhe a devida “educação” que nunca teve. Mas Ilya anseia pelos prazeres carnais, pela música da sua tão amada ilha e pelas expressões de cultura popular que a ligam à sua adorada Grécia. Habita o seu próprio mundo, repleto de devaneios e onde as grandes tragédias gregas são rescritas e repletas de finais felizes. Na realidade, o mundo de Ilya é mais delicioso e simples do que aquele que habitamos e assim, ao contrário do que poderia acontecer num filme de Hollywood, Homer não salva Ilya. Ela não precisa de de ser salva. E por muito que “Nunca ao Domingo” acabe por reduzir o povo grego a certos estereótipos, a sua alegria de viver é inegável e por isso material precioso para as Gay Girls Riding Club.
Quando à pequena curta “Always on Sunday”, primeiro filme do coletivo e a inversão de “Never on Sunday” para a promessa de “sempre ao domingo”, o título diz-nos desde logo muito sobre o que podemos esperar. “Always on Sunday” recria, de forma quase exata, uma das primeiras cenas de “Nunca ao Domingo”, na qual Homer compra inadvertidamente uma luta com Tonio (Giorgos Foundas) por elogiar o seu estilo de dança. Esta cena caricata torna-se ainda mais caótica na sua versão drag, e eis que, no fim, como punchline, os marinheiros não partem com Ilya mas sim com um acompanhante do sexo masculino. Lá seguem os três, rua fora, com a promessa de diversão no horizonte.
“Always on Sunday”, que Ray Harrison assina como Connie B. de Mille, sem diálogos e com poucos minutos de duração, não pretende ser uma narrativa complexa. É antes um jogo de subversão de expetativas, sejam pela “troca” de Ilya pelo acompanhante masculino, seja pela repetida introdução marota do número “69” numa máquina registadora, pelo levantar do saiote das protagonistas do filme ou pelo preenchimento, com pessoas queer, de espaços heteronormativos.
Se “Nunca ao Domingo” já tinha o seu “q” de arrojado, devido à normalização implícita da prostituição e de uma certa noção de poliamor, a curta G.G.R.D. aumenta o volume e reforça todos os sentimentos de transgressão que pudessem já marcar presença. Fá-lo através de muita citação direta, mas também cunhando a sua própria versão dos eventos. A folia, essa, continua em altas.