Queer Lisboa ’18 | Marilyn, em análise
“Marilyn” é baseado numa história bem real e muito trágica. O filme, realizado pelo argentino Martín Rodríguez Redondo é também um dos melhores filmes em exibição na competição de longas-metragens do Queer Lisboa deste ano.
Walter Rodríguez tem o tipo de cara que nasceu para um dia ser adorada por uma câmara. Com maçãs do rosto proeminentes, um maxilar angular, lábios desenhados e olhos que parecem estar sempre a transbordar elegante melancolia, a face de Rodríguez lembra a das grandes estrelas do cinema mudo de outros tempos. Pelo menos, assim é quando o ator é filmado por Martín Rodríguez Redondo, um realizador argentino que, na sua primeira longa-metragem, decidiu contar no grande ecrã uma história verídica do seu país. Como seria de esperar numa narrativa queer tirada das manchetes dos jornais, “Marilyn” é uma tragédia, mas Rodríguez consegue encontrar inesperada elegância e complexidade na história, mesmo quando o filme não está a idolatrar o perfil do seu ator principal.
A sinergia entre Rodríguez e a câmara que o adora é um elemento chave da sua caracterização, sendo que Marcos*, também conhecido como Marilyn, é um protagonista relativamente passivo. Muito do filme é passado em grandes planos focados nas feições do ator em silêncio, sua inexpressão marmórea uma tela em branco sobre a qual Redondo e o espectador podem projetar o que desejarem. Parte da sua passividade devém da sua falta de arco narrativo tradicional. Marcos é um jovem que vive numa zona rural da Argentina, num rancho de criação de vacas com sua família empobrecida. Ele sente-se atraído por homens e gosta de se vestir como mulher, isso é algo que ele há muito aceitou. Sendo assim, “Marilyn” não é o típico filme sobre juventude queer em viagens de autodescoberta, pois este jovem já se descobriu.
“Marilyn”, por outro lado, usa a sua base em factos reais para examinar a sociedade e hierarquia económica e cultural em que Marcos se insere. Na sua procura por autenticidade, Redondo entrevistou e leu os diários pessoais da figura em que o filme se baseia, assim como outras pessoas transgénero que partilharam consigo relatos da adolescência. Essa atenção à representação de grupos sociais também se estende ao modo como o filme delineia o seu ecossistema humano, ou o modo como as divisões económicas e geográficas das pessoas ajudam a fomentar injustiças e a criar ambientes em que cadeias de poder e opressão de espalham como vírus altamente contagiosos. Além do mais, como bem sabemos, a opressão é um caminho que dificilmente não acaba em violência.
Talvez Olga, a mãe de Marcos, esteja ciente disso, mas escolhe ignorar o seu bom senso ou qualquer sombra de carinho maternal. Essa escolha, contudo, não tem de ser necessariamente maliciosa e “Marilyn” muito faz para investigar o ambiente que suscita tais comportamentos, mesmo que se mantenha sempre afastado da interioridade psicológica das suas personagens. Pobreza, no universo retratado no filme, é algo que discrimina, tira poder e acorrenta. Olga é prisioneira da sua condição social e, em muitas instâncias sente-se impotente, rebaixada em consequência de fatores muito além do seu controlo. Num gesto de impor seu poder e manter a ordem pacífica que ela entende para o mundo, ela oprime o seu filho.
Essa opressão é destrutiva, mas é entendível, nem que seja pela expressão de constante medo que se pinta na cara da atriz Catalina Saavedra. Olga tem medo do filho, tem medo do que ele fará a si mesmo e do que aquilo que é fará à família. Quando o patriarca morre, num dos momentos mais formalmente elegantes e dramaturgicamente económicos do filme, ela fica ainda mais desamparada do que já estava. Talvez em resposta a este tratamento como um animal perigoso, Marcos depressa começa a ganhar a presença de um animal enjaulado, sua raiva em constante supressão, sua dor algo que nem ele mesmo quer sentir. É claro que isto resulta numa explosão.
Pela sua parte, Redondo delineia a gradual evolução de tensões até ao imparável cataclisma com comedido virtuosismo formal, escolhendo apagar os ângulos mais dramaticamente excessivos da sua premissa narrativa. A sua abordagem estilística é elegante, mas contida, especialmente em cenas que parecem quase exigir o choque lúrido. Quando Marcos se veste de mulher para ir ao Carnaval e se divertir, num dos poucos momentos de liberdade e clara felicidade na vida da personagem, o realizador usa esquemas de montagem abruptos, secos, que não tantalizam o espectador a encarar a imagem de Marcos como Marilyn enquanto uma revelação ou reviravolta. Há uma naturalidade casual que tal gesto suscita, um pedido por sobriedade ao espectador que acaba por ser um dos melhores aspetos do filme.
Noutras instâncias, como na morte do pai, Redondo conta tudo com o mínimo de imagens e cortes possível. Um movimento de câmara para a esquerda, um plano de reação e um corte para a nova unidade familiar reduzida é tudo o que o cineasta precisa de mostrar. Mais à frente, quando Marcos tem a oportunidade de saborear alguma gratificação sexual através de um app de telemóvel e uma potencial mudança de casa para uma área mais urbana, a contenção do realizador mantém-se. Aí, o erotismo manifesto na história marca presença na abordagem estilística, mas a elegante falta de aparato com que o realizador o apresenta faz com que os momentos ganhem uma qualidade que transcende os prazeres da carne e se torna simbólica da liberdade que Marcos procura.
A história que “Marilyn” conta não é nova e não surpreende. As suas raízes verídicas não alteram isso, mas a perspetiva do seu realizador confere uma pátina refrescante ao projeto final. Como um retrato de cadeias de opressão, de uma sociedade para com seu povo, dos ricos para com os pobres, de homens para com mulheres, de mães para com filhos, de privilegiados contra os que mais necessitam, a obra é uma pequena jóia, tão cáustica como elegante. Não é um filme feliz, e sua constante miséria torna-se difícil de engolir para o espectador que procure alguma flexibilidade tonal, mas tem o seu inegável valor. Com prestações subtis, construção formal virtuosa e um realizador em promissor início de carreira, esta tragédia queer é o tipo de história que um dia esperamos poder parar de contar. Presentemente, ainda se trata de uma narrativa tristemente relevante e suas causas são algo a ser examinado com urgência.
*Apesar do filme ser baseado na história de uma mulher trans, na narrativa de “Marilyn”, as únicas vezes que a figura principal é tratada como uma mulher, com o nome titular, é em tom pejorativo. Por isso, neste texto tratamo-lo como “ele” e como Marcos, pois a figura em cena, não obstante a sua base verídica, não parece partilhar essa identidade de género ou pelo menos não parece ainda ter descoberto isso acerca de si mesma.
Marilyn, em análise
Movie title: Marilyn
Date published: 22 de September de 2018
Director(s): Martín Rodríguez Redondo
Actor(s): Walter Rodríguez, Catalina Saavedra, Germán de Silva, Ignacio Giménez, Rodolfo García Werner, Andrew Bargsted, Josefina Paredes, German Baudino
Genre: Drama, 2018, 80 min
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Cláudio Alves - 82
CONCLUSÃO
“Marilyn” é uma estreia que promete muito do seu realizador. O elenco excecional e uma abordagem formal que brilha pela economia do gesto ajudam a trazer esta história verídica para o grande ecrã sem desnecessários sensacionalismos ou elementos grotescos.
O MELHOR: O modo como Redondo propõe uma abordagem ancorada em ideias de realismo social, mas, ao mesmo tempo, consegue manipular os elementos realistas para ajudar o seu discurso dramatúrgico. Veja-se a qualidade pictórica, meio funérea, das composições do quarto em que Marcos, sua mãe e irmão mais velho dormem. Outro exemplo é o uso sugestivo de efeitos sonoros no fundo de cenas como sinfonias ominosas muito mais eficazes que qualquer esforço mais melódico.
O PIOR: O imutável miserabilismo de todo o projeto e a distância que insiste em manter de todas as suas personagens, incluindo Marcos. O irmão do protagonista é particularmente subdesenvolvido e pouco examinado, parecendo mais um adereço que outra coisa.
CA