QueerLisboa ’21 | Querelle, em análise
Este ano, o QueerLisboa começou numa nota retrospetiva. Olhando o passado do cinema LGBT+, o festival iniciou-se com a exibição de “Querelle – Um Pacto com o Diabo” do alemão Rainer Werner Fassbinder.
“Cada um mata o que mais ama” – assim nos canta a divina Jeanne Moreau num dos seus mais icónicos papéis. Ela é Madame Lysiane, proprietária de um bordel que cativa os marinheiros de passagem por Brest. Seus amores e desejos sublimam-se num ambiente carregado de erotismo masculino, gestos homossociais transfigurando-se numa violência que cheira a sexo. Na vida matrimonial, Lysiane casou com Nono e com ele tem um acordo traiçoeiro. Cada um pode ter os casos que quiser, sendo que o marido mantém relação com o capitão da polícia e ela com o irmão de Querelle.
Nem Lysiane nem Nono são os protagonistas de “Querelle”, mas as palavras da senhora revelam a ideia que está no âmago deste filme que, no lugar onde a maioria das histórias tenta ter uma alma, tem uma ereção tumescente. Apesar de se dizer adaptado de um texto de Jean Genet, a obra é mais resposta que tradução da prosa para o cinema. Também marcou o fim da carreira de Rainer Werner Fassbinder. O enfant terrible do Novo Cinema Alemão morreu pouco antes da estreia, traçando linhas mórbidas sobre este retrato cinematográfico.
Se o trabalho já se focava na interseção de desejo e violência, prazer e morte, o fado do realizador veio salientar a dinâmica ainda mais. Mas o que é que Fassbinder amava? O que é que ele matou? Num paradigma simbólico, poderíamos retorcer um pouco as verdades cantadas de Madame Lysiane. Como nos mostram todas as biografias do autor, ele era um criativo tirano e obcecado com o seu próprio génio. Quiçá o amor próprio lhe tenha sido o bilhete para a destruição.
Contudo, propomos outra leitura. O cinema amava Fassbinder e, no fim, matou-o como um amante enraivecido que já gastou toda a vitalidade do companheiro. “Querelle” é testamento e é confissão, é um orgasmo gritado que ejacula sangue. É um pesadelo da perdição. O derradeiro título numa filmografia freneticamente realizada, o 44º filme de um realizador com somente 37 anos, esta reflexão sobre vontades proibidas é tão perversa como aliciante.
Querelle trata-se de um marinheiro que atraca em Brest e depressa se desventura pelo submundo da cidade, de Lysiane e Nono. Insuflado de desejos excitantes, um encontro para o sexo torna-se num obsceno teatro de penetração sanguinária. Querelle mata um homem. Depois da fornicação por meio de apunhalamento mortal, o marinheiro como que procura castigo pelos pecados. Submetendo-se a Nono, ele torna-se objeto do prazer alheio, procurando a dor como garantia de absolvição. Só que o castigo é mais doce que amargo, a sodomia regozija e não condena.
Pelo caminho, o marinheiro ganha mais amantes, tornando-se provedor de prazeres carnais a Lysiane e a um misterioso homem chamado Mário. Por detrás deste espetáculo de luxúria, o hedonismo é máscara da sordidez, do horror. Querelle e seu irmão lutam, seus abraços pontuados por murros furiosos. Ao mesmo tempo, o inferno de Brest produz mais um assassino e as culpas do primeiro assassino escorrem pelas costas suadas do marinheiro. De alguma forma, ele parece sempre safar-se, mas o coração trai-o.
Quando a salvação absoluta está no horizonte, quando só é preciso culpar um estranho pelos crimes próprios, Querelle deixa que o seu sexo e seu coração se apeguem ao outro homicida. Todas as personagens vivem num estado de letargia narcotizada, apáticos ao absurdo das suas existências teatrais e como que buscando genuína emoção nesse ponto de encontro entre aniquilação e êxtase. Talvez por isso o ato de matar seja afrodisíaco. Talvez por isso, Querelle se sinta tentado a esquecer o amor próprio. No fim, contudo, o egoísmo triunfa, mas o amor não perde por isso.
Descrevendo o enredo solipsista deste filme, apercebemo-nos de quão contraditórios tantos dos gestos narrativos se revelam. Antónimos parecem significar o mesmo neste universo eremiticamente fechado num tableau de perpétuo por-do-sol. O artifício do cenário é quase brechtiano e sua descarada falsidade ajuda a contextualizar os paradoxos eróticos da história. Todos os signos visuais nos apontam para um melodrama resplandecente, um ballet esmurrado onde toda a agressão é coreografada e todo o sexo é poema.
No entanto, o conteúdo lascivo contradiz a beleza polida da fotografia. A palavra florada da narração e intertítulos é contraposta pela rudez do diálogo desornamentado. A arquitetura fálica e seus simples desígnios de hiperssexualidade são complicados pela neurose das personagens. “Querelle” afigura-se celebração erótica, uma ilustração fetichista feita de carne e osso, mas os humanos que compõem seus quadros revelam profundezas assustadoras. O marinheiro titular é especialmente fascinante, uma identidade fraturada numa procura confundida pelo castigo e a expiação, a fuga, a foda, o fim.
A última façanha de Fassbinder no grande ecrã é um justo, se trágico, ponto final para uma carreira definida pelo cinema da crueldade. Numa conjetura moderna onde a assimilação da subcultura queer é tão debatida, ver este pesadelo assumidamente abrasivo é quase libertador. Queremos aplaudir “Querelle”, mas também choramos as oportunidades perdidas do seu autor. Depois da trilogia sobre uma Alemanha em reconstrução, o glamour oxidado deste filme parecia apontar para uma nova fase na carreira de Fassbinder, uma nova via jamais explorada. Independentemente desses contextos, trata-se de um trabalho sublime e uma estrondosa forma de começar o novo QueerLisboa.
Querelle, em análise
Movie title: Querelle
Date published: 19 de September de 2021
Director(s): Rainer Werner Fassbinder
Actor(s): Brad Davis, Franco Nero, Jeanne Moreau, Günther Kaufmann, Laurent Malet, Burkhard Driest, Werner Asam, Robert van Ackeren, Isolde Barth, Hanno Pöschl
Genre: Drama, 1982, 108 min
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Cláudio Alves - 90
CONCLUSÃO:
Um beijo como prelúdio à facada, o homicídio como preparação para o sexo, “Querelle” está entre o sonho molhado e o pesadelo. A última obra de Fassbinder é uma joia de cinema brechtiano, de artifício deliberado e realismo repudiado.
O MELHOR: A iconografia clássica do erotismo gay explodida numa alucinação onírica, com marinheiros tesudos e polícias em cabedal, torres eretas na forma do sexo, cuspo que brilha como um diamante líquido que liga a língua ao orifício.
O PIOR: A insularidade da obra e seu cosmos enfumado tanto excita como tira o ar. Este é um filme esteticamente sufocante, asfixia erótica em forma de cinema.
CA