Rainha de Copas, em análise
Vencedor do prémio da audiência no Festival de Sundance do ano passado, nomeado para o prémio de Melhor Atriz Europeia, “Rainha de Copas” é uma provocadora história de abuso. O filme é uma das novidades da Cinema Bold.
Nos tempos que correm, cada vez mais ouvimos histórias de abuso e coerção sexual, usualmente associadas a dinâmicas de poder tão perversas quanto desequilibradas. O trabalho de jornalistas e a coragem de sobreviventes fazem com que estas histórias sejam ouvidas atentamente ao invés de ignoradas. Nem tudo é perfeito, mas, pouco a pouco, algum progresso se começa a notar. Algo a apontar, contudo, é que, apesar de as mulheres serem as principais demografias sobre a qual tais abusos incidem, não devemos por isso dar pouca importância a dinâmicas abusivas onde os homens são as vítimas.
Dizemos tudo isto, pois “Rainha de Copas” é um filme para os nossos dias que confronta tais problemáticas com chocante frieza. A realizadora May el-Toukhy concebeu um retrato assustador de como um menor pode ser manipulado a entrar numa relação sexual com um adulto. Contudo, ao invés de apresentar esse conto nos paradigmas de género a que estamos, mais ou menos, acostumados, ela revirou os papéis. Neste filme, a mestra abusadora é uma mulher e a pessoa que ela predada é um jovem. Para sermos mais específicos, trata-se do seu enteado, o filho do primeiro casamento do marido dela.
Quando o filme começa, el-Toukhy não revela logo todas as suas manhas. Enquanto espectadores, somos apresentados ao ambiente doméstico de uma família dinamarquesa de classe alta. Anne é uma advogada de sucesso, cujo ofício se tem vindo a focar na defesa de mulheres vítimas de violência sexual. Confiante e altiva, ela parece-nos quase uma figura inspiradora e seu lar modernista é um Éden que ela partilha com o marido, Peter, e suas duas filhas. A paz é perturbada quando Gustav, o filho mais velho de Peter, aparece sem aviso e vem causar grandes tensões no seio familiar. Ao início, o patriarca parece ser aquele que mais se opõe a Gustav, tornando Anne numa figura de apoio maternal perante o rapaz.
Contudo, há algo podre no reino da Dinamarca. Gradualmente, o que era maternal começa a ter conotações mais eróticas e, uma noite, a relação de Anne e Gustav resvala para o sexo. O maior truque de el-Toukjy enquanto realizadora, é quanto ela nos mantém aconchegados na experiência subjetiva de Anne durante o primeiro ato do filme. É fácil ver algo de orgânico no comportamento das personagens, como se a sua união afetiva fosse algo que floresceu naturalmente da cumplicidade entre madrasta e enteado. Contudo, depois da linha do sexo ser passada, o modo como o filme nos apresenta a informação começa a mudar, preferindo um olhar clínico a uma visão ensombrada pelo fulgor do melodrama.
O que se vai revelando é uma história de venenosa manipulação. Cada gesto de bondade de Anne torna-se em mais uma micromanipulação, mais um passo no seu plano de encurralamento de Gustav. Quando o miúdo se começa a sentir mal com a situação e rejeita a mulher mais velha, então até ele percebe que foi usado. De repente, o que parecia natural mostra-se como uma cuidada construção, cheia de armadilhas que fazem com que a verdade seja quase impossível de expor. Quando ele tenta contar, apenas cumpre aquilo que Anne já havia prefigurado. Habituada a lidar em tribunal com abusadores e vítimas de abuso, ela sabe a linguagem a utilizar para o prender e incriminar, caso Gustav não concorde em manter a boca fechada.
De luxuriante drama erótico, “Rainha de Copas” transmuta-se num arrepiante exemplo de terror psicológico. Enquanto que a história, quando vista através dos olhos de Anne, pode ter o teor de libertação sexual, do ponto de vista de Gustav é como uma armadilha cujos dentes de metal se vão cravando cada vez mais profundamente na carne. Esta dualidade amoral necessita de grandes atores para funcionar e, felizmente, “Rainha de Copas” tem um elenco miraculoso. O melhor intérprete é Trine Dyrholm que dá vida a Anne com lacerante honestidade. Ela representa uma mulher inteligente e sensual, mas impede-nos sempre de ver a vulnerabilidade dela, seus olhos são paredes e não janelas para a alma. Esse pequeno detalhe, essa minúscula distância que ela mantém do espectador, é o suficiente para deixar a descoberto o monstro que é Anne.
Rainha de Copas, em análise
Movie title: Dronningen
Date published: 25 de June de 2020
Director(s): May el-Toukhy
Actor(s): Trine Dyrholm, Gustav Lindh, Magnus Krepper, Liv Esmår Dannemann, Silja Esmår Dannemann, Stine Gyldenkerne, Preben Kristensen, Carla Philip Røder, Peter Khouri, Mads Knarreborg
Genre: Drama, 2019, 127 min
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Cláudio Alves - 80
CONCLUSÃO:
“Rainha de Copas” conta uma importante história onde o amor familiar serve de veículo para a predação sexual. Ancorado por performances exímias e realizado com disciplinado modernismo, este é um filme tão mais aterrador pela superfície polida com que nos apresenta seu conto degradante.
O MELHOR: A prestação assustadora de Trine Dylrholm. Que grande atriz!
O PIOR: Para quem deseje ver uma resolução justiceira para este enredo, “Rainha de Copas” vai desapontar. Este é daqueles argumentos que vive da miséria e seu final não difere.
CA