Jacques Perrin e Claudia Cardinale em "A Rapariga da Mala" © Titanus Film

Classic Fever | A Rapariga da Mala (1961), de Valerio Zurlini

A Rapariga da Mala continua em exibição e não quisemos deixar passar a oportunidade para analisar este drama com Claudia Cardinale.

Depois de retomarmos a nossa rubrica Classic Fever no mês anterior com o filme “Milagre por Um Dia“, de Frank Capra, voltamos este mês com a análise de um filme europeu, também lançado inicialmente em sala em 1961 e que voltou a ser re-exibido em Portugal, numa cópia restaurada em 4K. Foi no passado dia 1 de julho de 2021 que “A Rapariga da Mala” ou “La Ragazza con la valigia”, no título original voltou ao grande ecrã, numa reposição feita pela Medeia Filmes Cinemas, no âmbito da 1ª parte da rubrica de programação “Os Grandes Mestres do Cinema Italiano”.

A Rapariga da Mala

Passado mais de um mês desde a sua estreia, a MHD não quis deixar passar mais tempo para analisar esta obra realizada por Valerio Zurlini. A escolha foi feita sobretudo para celebrar este lançamento da Medeia Filmes e porque em breve voltaremos a ter pelo país fora (e não só), a Festa do Cinema Italiano (a 14ª edição está agendada para novembro próximo), razão para recuperar um clássico desse país. Além disso, falamos de um dos filmes mais conceituados do cinema italiano, como indicado em inúmeras publicações da revista francesa Cahiers du Cinéma, e também de uma obra que tantas vezes passou pelas salas da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Não obstante esses percursos, “La Ragazza con la Valigia” está praticamente esquecido da memória dos amantes do cinema italiano, assim como os restantes filmes de Zurlini, que faleceu aos 56 anos, deixando um currículo para muitos escasso.

A obra de Valerio Zurlini merece uma perpétua (re)descoberta. De todos os cineastas italianos, permanece o mais esquivo. O mais frágil também, como atesta a sua parca carreira (apenas oito longas-metragens, e alguns fracassos), encurtada pela sua intransigência artística e por dramas privados. O cinema de Zurlini situa-se entre uma certa tradição literária herdada do “caligrafismo” dos anos 30 (como o de Bolognini) e uma revolução doce, uma quebra estilística que fazem dele um cineasta profundamente moderno, mas menos ostensivo do que Pasolini ou Antonioni. Os seus filmes são dramas angustiantes que preferem a retenção à abundância lacrimal e o intimismo psicológico a clichés. [Olivier Père, Les Inrockuptibles traduzido por Cláudia Coimbra em ‘Folha de Sala de “A Rapariga da Mala’]

Parece-nos evidente que “A Rapariga da Mala” abria as portas para uma nova forma de fazer cinema, similar à rutura instaurada com a Nouvelle Vague em França. Este é um cinema mais próximo dos nossos dias, em que tantos jovens – homens e mulheres – percorrem o país com a sua bagagem, para encontrar respostas aos seus sonhos e ambições mais íntimas. Entre roupas, livros, utensílios de beleza, fotografias e outros dispositivos que pouca utilidade têm, uma mala acaba por carregar sempre o lado mais privado do ser humano. Existem muitos de nós que a conseguem desfazer e colocar cada um dos seus itens numa nova cidade, num novo quarto ou novo lar. Outros precisam de movimentar-se, de perceber melhor o que o mundo lhes poderá oferecer, mesmo que essa mala seja pesada e que esteja prestes a se romper ao meio. É essa a experiência rotineira e de perpétua busca que melhor descreve Aida Zepponi, a protagonista de “La Ragazza con la Valigia” interpretada por Claudia Cardinale, atriz que na época do lançamento do filme tinha apenas 23 anos. Graças à beleza desta atriz e a sua fama um pouco por todo o mundo que muitos espectadores quererão (re)ver este drama romântico de Zurlini. Percebamos agora o porquê de ser relembrado.

Qual é a história de A Rapariga da Mala?

Apresentado em julho nas salas de cinema nacionais como ‘o filme mais célebre de Zurlini’, “A Rapariga da Mala” segue uma bela e jovem mulher que canta e dança para ganhar a vida – uma nómada que certamente muitos observarão como prostituta. Apesar de aparentar ser uma mulher independente, Aida Zepponi é na verdade uma mulher com uma vivência conturbada, sobretudo pelas suas experiências românticas habitualmente com homens casados ou com playboys pertencentes a famílias aristocráticas que nada mais querem do que diversão e tirar proveito do seu corpo objeto de prazer. Enquanto persegue o seu mais recente amante, que obviamente a abandonou, e que conhece pelo nome de Marcello Marchiorri (na verdade o seu nome é Marcello Fainardi), Aida irá travar conhecimento com Lorenzo (interpretado pelo ator fetiche de Zurlini Jacques Perrin), um jovem de 16 anos e o irmão mais novo do seu amante.

A Rapariga da Mala
Jacques Perrin e Claudia Cardinale em “A Rapariga da Mala” © Titanus

Lorenzo é um jovem tímido, sensível e sexualmente inexperiente, com um rosto limpo e um espírito puro, bastante dedicado aos estudos de Latim, e que conhece bem as aventuras do irmão. Quando este lhe pede para se livrar da ‘cretina’, Lorenzo decide fazê-lo, mas subitamente é atraído pela beleza e pelo charme de Aida. Rapidamente começam a conversar um com o outro, e juntos acabam por nutrir um carinho especial. Nascerá assim um amor angustiante entre os protagonistas, um amor impossível entre homem e mulher pertencentes a classes sociais distintas, e que só poderão viver os sentimentos que sentem um pelo o outro no silêncio, na solidão e na totalidade do amor platónico.

O trailer do relançamento em sala da cópia restaurada em 4K d’”A Rapariga da Mala” pode ser visto abaixo. Os direitos de distribuição em Portugal são da responsabilidade da Leopardo Filmes.

Em “A Rapariga da Mala“, o terceiro filme de Valerio Zurlini, o realizador retoma a temática do ‘relacionamento impossível’, exatamente como decorreu em “Um Verão Violento” (1959). Estes dois filmes, juntamente a “Outono Escaldante”, de 1972 compõem aquela que é conhecida como a trilogia adriática de Zurlini.

Como relembrar A Rapariga da Mala?

A Rapariga da Mala” deve ser relembrado na história do cinema por uma série de razões. A primeira delas está claramente relacionada com a presença Claudia Cardinale, e à maneira como a atriz – aqui dobrada por Adriana Asti – veste a pele de Aida. Ao espectador é oferecida uma jovem mulher de formosura olímpica que ainda não encontrou o seu lugar no mundo, e que vive desesperada por oferecer um futuro melhor ao seu filho, ainda criança. A carnalidade da sua personagem permite a Cardinale estabelecer um novo modelo da mulher italiana, uma mulher que consegue ser mais ousada na sua forma de vestir e de caminhar. No entanto, falamos de uma mulher frágil, que por muito que queira romper com uma sociedade machista, todas as suas decisões são marcadas pela cultura patriarcal. Graças a este filme, Claudia Cardinale conseguiu estabelecer o seu sucesso no cinema italiano, fortemente comparado outras atrizes populares da altura como Gina Lollobrigida ou a maior diva do cinema italiano, Sophia Loren. “La Ragazza con la Valigia” foi determinante inclusive para Cardinale conseguir o seu papel no filme “8 1/2” de Federico Fellini.

A Rapariga da Mala” é igualmente importante por esmiuçar, com uma certa ternura o relacionamento entre corpos de idades divergentes e com condições sociais e financeiras totalmente separadas. Curiosamente, esse olhar mais nostálgico, fez-se porque Valerio Zurlini fazia referência no filme à sua própria vida, pois também ele, enquanto adolescente, apaixonara-se por uma mulher mais velha. Por um lado, temos a atormentada e selvagem rapariga da mala e do povo Aida – muitas vezes ingénua – e, por outro lado, o rapaz pertencente à classe burguesa e aristocrática de Parma, cidade localizada no centro-norte de Itália. O casal partilha momentos únicos, mas o amor nutrido está destinado ao fracasso desde o primeiro instante e é nessa lógica que o filme de Zurlini acaba por ser original e diferente do cinema italiano até então, marcado quer pelo neorrealismo e denúncia dos maus-tratos das classes menores, quer pela comédia de costumes, onde as diferenças são tratadas com sarcasmos e ironias. Zurlini impõe o cinema lírico, da poética e da melancolia.

A Rapariga da Mala
Claudia Cardinale em “A Rapariga da Mala” © Titanus

Lorenzo, por muito que seja mais novo, é quase sempre filmado numa forma superior, para evidenciar a sua situação de privilégio perante Aida. Isso fica evidente logo numa das primeiras sequências do filme, quando Aida vai até ao palácio da família Fainardi e cruza-se com Lorenzo, que está uns degraus acima de onde se encontra a nossa protagonista. Só uma vez vemos Aida no cinema da escadaria, como se a vontade de Lorenzo trazer aquela mulher para a sua vida, para o seu ambiente, possa ser uma realidade credível, quando nada mais é do que uma miragem. Além da desarmonia económica, os degraus são, porventura, uma maneira de colocar Lorenzo num subtil plano espiritual, como um primogénito de Zeus que não consegue tocar a humanidade, ou um Orfeu que ao descer ao inferno e ao olhar para a sua Eurídice perde todas as possibilidades de um final feliz. E é exatamente na troca de olhares entre Cardinale e Perrin, dois dos seres mais belos do cinema, que conseguimos decifrar o estilo de Valerio Zurlini neste filme. “A Rapariga da Mala” é o cinema dos olhares evasivos, dos discursos que não verbalizam, dos discursos que moem o cérebro e destroem o coração. O olhar é desmontado em close-up ainda na sequência do banho e posteriormente na sequência da praia, onde Aida e Lorenzo estão abandonados da sociedade e, por segundos parecem ignorar essa autoridade controladora das suas vontades.

De referir ainda que “A Rapariga da Mala” é um filme crucial para entender as dicotomias do cinema italiano que seriam adoptadas ao longo da década de 50, sobretudo o cinema da mulher que deixa de ser a simples dona de casa, para ser uma mulher igualmente madura, mas que pode longe desse espaço. Somos confrontados com as singularidades de uma rapariga com a mala, em infinito movimento, e que não aguenta mais de dois segundos no mesmo local. Por muito que o fardo de carregar aquele objeto lhe cause, a protagonista é uma mulher que prefere viver na nostalgia de amores fracassados. Temos também a representação do amor entre uma mulher mais velha e um homem mais novo, algo que nem sempre era explorado na época e marcaria alguns arquétipos futuros no cinema internacional.

A Rapariga da Mala
Claudia Cardinale em “A Rapariga da Mala” © Titanus

La Ragazza con la Valigia” permite assim a Valerio Zurlini desenhar uma visão da Itália do início dos anos 60, a Itália que proibia o romance entre um miúdo de 16 anos e uma mulher mais velha, a Itália que ‘apedreja’ as mães solteiras, a Itália do boom económico, a Itália da música, e no final de contas a Itália machista. Essa era uma pátria confusa, que se estava a moldar e a definir novos valores e normas depois da Segunda Guerra Mundial. Temos uma visão da Itália da juventude perdida, que não sabe bem como resolver o problema maior da existência, nem consegue romper raízes com o passado. Este é um desabafo de Zurlini para todos os jovens órfãos de mãe, que procuram em Aida uma protetora, a companheira, mas que não a podem tocar. Hoje, ao revermos este filme queremos pensar que ainda há esperança e salvação nos amores de juventude.

A Rapariga da Mala: Para ficar no olho e/ou no ouvido

“A Rapariga da Mala” pode ser ainda contemplado como autêntico coming-of-age, inserindo nesses filmes em que os rapazes começam a ter as suas primeiras experiências sexuais. São exemplos “Anna e os Adolescentes” (1969, James Neilson) com Jacqueline Bisset ou “Verão de 42” (Robert Mulligan, 1972) com Jennifer O’Neill e Gary Grimes. Além desses casos, “A Rapariga da Mala” parece ter muitas semelhantes com “Chama-me Pelo Teu Nome” (Luca Guadagnino, 2017), um dos melhores projetos italianos dos últimos anos, onde atinge-se a máxima representação do amor carnal e platónico.

Tanto “La Ragazza con la Valigia” como “Chama-me Pelo Teu Nome” têm, pelo menos, uma cena em comum. No filme de Zurlini, Lorenzo observa atento, sentado e à distância, os movimentos na pista de dança de Aida com outro homem, um turista francês, enquanto os seus olhos expressam um mar de sentimentos: desejo, prazer, ciúme, tristeza e raiva, tudo isso numa só imagem. O mesmo fez Guadagnino na sequência de dança de Oliver, enquanto Elio observa-o o corpo do homem que ama em movimento. Para acompanhar a imagem, Valerio Zurlini recorreu à música diegética da autoria de Bruno Nicolai, Mario Nascimbene e Mario Gangi e dá ainda mais forma à sua cena, que mostram um Lorenzo a ser consumido pelo sofrimento. Aí vemos um jovem e não o Deus que começa a ser consumido pela dor e que tanto ansia despejar um ataque de relâmpagos sobre os humanos. Aqui, Aida está num plano superior, face à impotência de Lorenzo.

Todo o filme é acompanhado pela música, seja através da guitarra para representar a personagem de Aida e do clavicêmbalo para representar Lorenzo, além da música popular da época, presente nos diferentes media que marcam presença da obra, como a rádio dos automóveis, os gira-discos e a televisão.

Ouvimos também músicas como “Il cielo in una stanza” e “Tintarella di Luna” de Mina ou ainda “Impazzivo per te”, de Celentano. São esses os elementos musicais perfeitos para o crepúsculo da relação entre os protagonistas e que não deveremos esquecer neste filme, um singelo clássico moderno.

A última exibição de “La Ragazza con la Valigia” acontece no próximo dia 21 de agosto às 21h30 no Cinema Medeia Nimas em Lisboa. Podes comprar os bilhetes aqui



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