O Regresso de Ulisses, a Crítica | Ralph Fiennes e Juliette Binoche reinterpretam a Odisseia
Ralph Fiennes é o herói de Homero em “O Regresso de Ulisses,” também conhecido como “The Return,” uma nova adaptação da “Odisseia” com assinatura de Uberto Pasolini. Após passar no Festival de Toronto, Chicago, Roma, Dublin e até na Festa do Cinema Italiano em Lisboa, a obra finalmente tem estreia comercial nas salas portuguesas.
Será difícil pensar em obras mais basilares para a cultura Europeia que a “Odisseia” de Homero, esse poema épico sobre a aventura de Ulisses, rei de Ítaca, no regresso a casa após ter combatido na Guerra de Tróia. Na História da literatura, não é possível sobrevalorizar a importância desta criação, seu legado inestimável e imortal. Por isso mesmo, não podemos censurar os muitos artistas que têm vindo a ser inspirados pela “Odisseia” numa série de disciplinas, desde a pintura ao cinema. De facto, muito se tem falado sobre este texto clássico em contextos cinematográficos devido ao novo projeto de Christopher Nolan, uma megaprodução a ser filmado na Irlanda e em torno do Mediterrâneo.
Mas antes de Nolan, já outro cineasta reconsiderou a “Odisseia” para o cinema da nossa década. Foi Uberto Pasolini, sobrinho do lendário Luchino Visconti, que somente adaptou as últimas passagens da epopeia, reduzindo a narrativa de uma década às suas conclusões melancólicas. “O Regresso de Ulisses” apanha a personagem titular no fim da sua viagem, chegado à costa de Ítaca sem que ninguém o reconheça como o monarca esquecido. Só a sua família se parece recordar dele, prezando a sua memória no palácio da ilha, sem saberem ainda do seu retorno. Penélope espera o marido, engendrando esquemas para adiar o matrimónio com os muitos pretendentes que a julgam viúva. Telémaco, por sua vez, corre risco de vida como o herdeiro do pai.
Um épico reimaginado como drama humano.
Qualquer espectador familiar com o que nos resta da poesia homérica reconhecerá como a adaptação de Pasolini não se limita a dramatizar somente o fim da “Odisseia.” Mais ainda que excisar texto, o cineasta procura o realismo numa vertente literária onde tais estilos não têm lugar. Os deuses estão ausentes nesta versão do conto, tanto em intervenção direta como em diálogo, rasgando-se a especificidade cultural da Grécia Antiga em nome de algo que o público contemporâneo poderá mais facilmente reconhecer. O mito apagado, ficam as personagens e sua dor, arquétipos reencarnados enquanto psicologias complexas, próximas de tradições modernas ao invés da antiguidade clássica.
Será fidelidade a Homero ou uma capitulação a gostos e sensibilidades do século XXI? Apesar de Pasolini e companhia se apoiarem à primeira hipótese, sua justificação suprema para a abordagem escolhida, nós temos as nossas dúvidas. Contrapondo “O Regresso de Ulisses” ao cinema de outro autor como Robert Eggers, é fácil ver como o realizador de “A Bruxa” e “Nosferatu” valoriza as diferenças essenciais e fundamentais entre o nosso presente e as pessoas que viveram antes de nós, em contextos culturais tão distintos ao ponto de serem alienígenas e alienantes. Há alguma covardia neste estilo de dramatização que procura encurtar distâncias entre o homem moderno e aquele perdido nas profundezas da história, do mito.
Dito isso, uma adaptação leal aos preceitos da “Odisseia” não é necessariamente bom cinema. Se “O Regresso de Ulisses” falha, não será por estas razões apenas. Além disso, há muito que se valorizar no filme que temos diante de nós, sem ser preciso fantasiar sobre uma obra diferente, concretizada por artistas com outras prioridades que aquelas de Pasolini, os coargumentistas John Collee e Edward Bond, os atores e demais. Pensemos na estética em si, este minimalismo em tons de areia e sol poente, pedra e fumo com lanços de azul para as cenas de noite. Não há aquele fausto da Idade do Bronze, mas uma depuração quase teatral que torna todo o interior num palco e todas as ações nele interpretadas em rito e cerimónia.
Em reflexão, o realismo verifica-se só na caracterização e no pretensiosismo de algo que o espectador do século XXI possa confundir com visceralidade. Falamos da violência explodida em sangue e suor, pele ruborizada, cor de azeite doirado sob as luzes quentes com que o diretor de fotografia Marius Panduru pinta a cena. Falámos da traição ao classicismo literário, mas nestas técnicas verificamos um classicismo cinematográfico. É certo que, para alguns, isto será enfadonho, mais sacrifícios feitos ao altar de um público educado a mirar tais registos como sérios, inerentemente importantes e valiosos, merecedores de respeito.
Fiennes e Binoche, reunidos e gloriosos.
E é entre essa filmagem digital e as estilizações espartanas que o melhor elemento do filme surge – o elenco. Com a exceção de Charlie Plummer cujo Telémaco pouco convence, “O Regresso de Ulisses” é uma montra para os talentos dos seus atores, tantos deles tornados em objetos esbeltos a decorar o fundo cénico em poses escultóricas, como se tratassem de uma extensão carnal da arquitetura grega. O mais esculpido desses corpos é mesmo o de Ralph Fiennes que, aos 62 anos, não tem qualquer problema em expor-se por completo, desnudo e vulnerável, a imagem de um herói de ação mortificado pela vida, pelo desespero que tanto define a existência de Ulisses ao longo da sua odisseia.
Porque Pasolini e os restantes argumentistas têm mais amor pelo herói do que o próprio Homero teve, eles atenuam a tragédia do seu fado e fazem o mesmo com a crueldade do texto original. A chacina das escravas violadas pelos pretendentes de Penélope foi apagada, sem que, no entanto, “O Regresso de Ulisses” descure a violência inerente a esta história. Fiennes ainda compensa o que o guião escondeu com sua interpretação, cheia de raiva e sede de vingança. Mas também há a exaustão que vem com a raiva fulminante, o beco sem saída aonde tais sentimentos acabam sempre por levar. Se a tragédia de Ulisses é menos óbvia nesse reconto, Fiennes sugere as profundezas sôfregas que ficam por dizer.
Juliette Binoche merece semelhante aplauso, aqui reunida com Fiennes após as suas colaborações gloriosas no “Monte dos Vendavais” e “O Paciente Inglês.” Com o papel de Penélope expandido, ela é uma verdadeira coprotagonista com importância narrativa equiparável a Ulisses e tanta complexidade como a que é concedida ao rei de Ítaca. Há uma vertente calculista na sua negociação dos desejos e demandas dos pretendentes, o desabrochar da dúvida, o medo, o júbilo e algo mais difícil de descrever quando o seu marido reaparece numa torrente de sangue derramado. Por muito que Pasolini queira suavizar o fim deste “Regresso de Ulisses,” Binoche e Fiennes sublinham o potencial mais ambivalente do drama, negando simplismos reconfortantes em nome de algo doloroso, impossível de transcender mesmo quando tudo indica a vitória dos heróis.
O Regresso de Ulisses, a Crítica
Movie title: The Return
Date published: 17 de April de 2025
Duration: 116 min.
Director(s): Uberto Pasolini
Actor(s): Ralph Fiennes, Juliette Binoche, Charlie Plummer, Marwan Kenzari, Claudio Santamaria, Ángela Molina, Robert Serpi, Chris Corrigan, Maxim Gallozzi, Cosimo Desii
Genre: Drama, Aventura, Tragédia, 2024
-
Cláudio Alves - 60
CONCLUSÃO:
“O Regresso de Ulisses” volta a trazer a “Odisseia” de Homero ao grande ecrã, depurando o poema épico até só ficarem as suas últimas passagens. Sem deuses ou costume antigo que distancie a audiência contemporânea, esta adaptação está sutilmente modernizada. Meio covarde, meio insípida, tal abordagem serve, contudo, para possibilitar belíssimas caracterizações da parte dos intérpretes principais. Uberto Pasolini não faz justiça ao seu antepassado (Luchino Visconti) ou seu homónimo (Pier Paolo Pasolini), mas prova os seus talentos na direção de atores.
O MELHOR: Fiennes e Binoche, reunidos depois dos seus sucessos nos anos 90 e tão excelentes como eram há trinta anos atrás.
O PIOR: Charlie Plummer, a covardia implícita nesta de-mitificação do texto mitológico, o modo como Pasolini nem tenta encarar as figuras que Homero cantou como produtos de uma cultura antiga, específica, alienante.
CA