Roleta Chinesa, em análise
O Ciclo Rainer Werner Fassbinder presenteou os espectadores com a exibição de Chinesisches Roulette (Roleta Chinesa), com Margit Carstensen e Anna Karina no elenco.
O JOGO DA ALEIJADINHA…!
Na verdade, ao contrário de um cineasta como Satyajit Ray que, mesmo nos filmes menos conseguidos, nunca nos desiludiu, Rainer Werner Fassbinder foi daqueles que acertou muitas e boas vezes no alvo e outras desviou o olhar do ponto fulcral da sua mira e atirou os dardos para o lado errado ou para um alvo secundário, acabando os projécteis por se espetarem na parede onde não era suposto abrirem uns incómodos buracos. Por outras palavras, umas vezes deu uma no cravo e outra na ferradura. No caso de CHINESISCHES ROULETTE (ROLETA CHINESA), 1976, o cavalo em que apostou foi guarnecido com ferraduras de alto gabarito intelectual e um orçamento compatível, mas o realizador e argumentista esqueceu as mais básicas lições de equitação e espalhou-se na primeira curva e no primeiro concurso de saltos de obstáculos que manifestamente não soube controlar rumo a um possível e seguramente desejado reconhecimento da sua eficácia numa eventual pontuação da nota artística. E porém os pressupostos ficcionais não podiam ser melhores. Dois casais vão passar uns dias numa mansão da alta burguesia alemã, cada qual com a sua e o seu amante, num jogo de infidelidades que não podia ser mais perverso a partir do momento em que os protagonistas destas “aventuras” simultâneas sabem da existência uns dos outros, apanhados que são no mesmo local, posteriormente na mesma mesa de refeições; só falta partilharem os quartos e as camas. Mesmo assim, há uma incursão na intimidade da casa de banho por parte da legítima mulher de um dos protagonistas, onde esta prepara um banho quente enquanto o marido se barbeia, como se fosse a coisa mais natural do mundo encornar ou ser corno. Na verdade, o que irá acontecer na alcova de cada qual nem chega a ser uma “ménage a quatre”, mas simplesmente uma forma decadente de preguiça sexual.
Na mansão habitam os empregados, mãe e filho. Ela é uma mulher de idade mais do que madura e semblante permanentemente zangado, numa pose altiva que só lhe fica mal. Ele não passa de um sonhador com pretensões de escritor e que funciona ali como um pau mandado da burguesia que o sustenta, assim como das regras da ordem pequeno-burguesa impostas pela mediocridade familiar a que pertence. Mas o ramalhete não podia estar completo sem a presença de uma personagem estranha, muito estranha, uma rapariguinha com um problema de locomoção, uma deficiente física portadora de uma personalidade mais retorcida do que misteriosa, como a sua preceptora muda, que colecciona numerosas bonecas como se elas fossem na sua frágil matéria simulacros de pessoas que ela pudesse controlar, sempre que não consegue controlar as de carne e osso, como a mãe adúltera que particularmente a incomoda. Escusado será dizer que a menina vai aparecer na casa grande e solarenga, prosseguindo o seu plano maquiavélico de reunir aquelas figuras para, pouco a pouco, lançar as cartas de um exercício sádico e definir as regras de um jogo de enigmas, a roleta chinesa, cujas perguntas e respostas rasgam feridas na alma de cada participante como se fossem punhais afiados e apontados aos órgãos vitais de um grupo de cidadãos, sem outra escapatória que não seja a autodestruição pelo desgaste psicológico, que finalmente resulta num processo de subversão daquela realidade concentracionária.
ROLETA CHINESA corresponde a uma primeira fase de internacionalização das produções dirigidas por Rainer Werner Fassbinder e, desse ponto de vista, podemos dizer que o cineasta alemão envereda aqui por uma linguagem mais próxima do que se fazia em França naquela época, pelo menos no chamado cinema de autor, muitas vezes a qualquer custo. De facto, o filme corresponde a uma síntese muito evidente dos valores de produção alemães que vinham da obra anterior do realizador, nomeadamente a manutenção do grande Michael Ballhaus na Direcção de Fotografia com incidência visível na paleta de cor assumida e que, mesmo com algumas nuances, permanece germânica. Não obstante, são valores de produção que se diluem com as idiossincrasias cromáticas gaulesas, ou seja, um exemplo difícil de sustentar num quadro de conjugação do esforço combinado de uma co-produção entre a ALBATROS PRODUCTION (Munique), a LES FILMS DU LOSANGE (Paris) e a TANGO FILMS. E não basta a presença de actores experientes e oriundos de diferentes escolas e práticas fílmicas para nos fazer desviar o espírito da obsessiva atenção que Fassbinder vai dar aos pormenores da decoração, numa forçada estética do lado material face ao lado subjectivo das relações humanas, patente no modo como se enquadra aquelas colunas de vidro ou prateleiras de plástico, onde a aparelhagem HI-FI e o amontoado de bebidas surgem como objectos que, ao invés de estarem ali para serem manipulados, parecem rivalizar, na sua natureza e função próprias, com as personagens circundantes que se deixam manipular.
Decidi começar por este filme nesta primeira abordagem das oito obras que constituem o Ciclo RAINER WERNER FASSBINDER, sub-intitulado A FÚRIA DE VIVER (mais uma excelente iniciativa da MEDEIA FILMES e da LEOPARDO FILMES) porque quero a partir de hoje salientar os que na minha opinião são as obras-primas que podemos ver em cópias imaculadas, restauradas para usufruto do melhor cinema nas melhores condições e com a máxima qualidade disponíveis. Depois de um filme que me desiludiu, prometo da próxima dar nota máxima ao primeiro que incluo entre os maiores, o excelente MUTTER KUSTERS FAHRT ZUM HIMMEL (MAMÃ KUSTERS VAI PARA O CÉU), 1975. E quem for ver esse e o que agora me ocupou este artigo poderá sentir bem a diferença entre projectos próximos no plano da produção e ver com os próprios olhos o que quero dizer com valores alemães, cor alemã, personagens alemãs, drama e melodrama alemães, política e subversão alemãs, milagre e pesadelo alemães. Em suma, aquilo que o realizador sabia melhor do que ninguém interpretar e a que soube dar na sua vasta obra uma inegável dimensão europeia. No entanto, são dois filmes separados por apenas e só um ano.
Roleta Chinesa, em análise
Movie title: Chinesisches Roulette
Director(s): Rainer Werner Fassbinder
Actor(s): Margit Carstensen, Anna Karina, Ulli Lomel, Macha Méril
Genre: Drama, 1976, 85min
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João Garção Borges - 60
Conclusão:
PRÓS: Localização em exteriores naturais, incluindo a mansão que pertencia ao Director de Fotografia, Michael Ballhaus.
O elenco internacional, a saber, nome e personagem: Anna Karina (Irene Cartis), Margit Carstensen (Ariene Christ), Brigitte Mira (Kast), Ulli Lommel (Kolbe), Alexander Allerson (Gerhard Christ), Volker Spengler (Gabriel Kast), Andrea Schober (Angela Christ), Macha Méril (Traunitz).
Excelente cópia digital restaurada.
CONTRA: Projecto que se esgota na proposta estética e no desenvolvimento pouco sedutor das relações entre as diferentes personagens que nunca chegam a arrebatar a alma do espectador para uma cumplicidade que seria fundamental para alcançar um patamar de ampla adesão ao cruel e enigmático “jogo da verdade” que dá pelo nome de ROLETA CHINESA.
Mas há quem goste muito e prefira a fria psicologia fílmica a filmes onde sobressai a pura emoção. São gostos, e ao contrário do que diz o ditado, discutem-se!