The Seed Of The Sacred Fig: Rasoulof exibe sua fúria contra o regime iraniano em Cannes
Fugido do Irão, o realizador Mohammad Rasoulof está em Cannes para apresentar seu novo filme, “The Seed Of The Sacred Fig”, um extraordinário e oportuno thriller familiar que por várias razões será decerto a mais que provável Palma de Ouro 2024 ou pelo menos não sairá daqui de mãos vazias.
Mohammad Rasoulof, o cineasta iraniano mais falado dos últimos tempos, apresentou ontem “The Seed Of The Sacred Fig”, um dos últimos filmes — é verdade que a melhor cepa fica sempre guardada para o fim — da Competição Oficial do Festival de Cannes 2024.
Por o facto de um realizador não comparecer a um festival de cinema para apresentar o seu filme não seria digno de nota, em circunstâncias normais. É o que dita não só o protocolo deste tipo de eventos, mas também a sua lógica. Porém a situação do cineasta iraniano está tudo menos normalizada: há apenas duas semanas, foi condenado a oito anos de prisão, chicotadas e confisco de bens depois que o Tribunal Revolucionário de Teerão ter considerado os seus filmes ‘exemplos de conspiração com a intenção de cometer crimes contra a segurança do país’, segundo seu próprio advogado, e dias depois Rasoulof fugiu para a Alemanha.
Teremos de esperar até hoje na conferência de imprensa, que Rasoulof dê declarações aos jornalistas mas nas últimas horas já deu explicações sobre o seu caso. ‘A minha missão é ser capaz de transmitir as histórias do que está a acontecer no Irão e a situação em que estamos presos como iranianos, e isso é algo que não posso fazer na prisão’, disse ao jornal britânico ‘The Guardian’ após a sua fuga.
O cineasta já cumpriu duas penas de prisão no passado e em 2020 não pôde mesmo sair do país para receber na Berlinale o Urso de Ouro que ganhou graças a “O Mal Não Existe”. Grande parte da pena que agora lhe foi imposta é também consequência da longa-metragem que ontem apresentou. E assim será pelo menos compreensível segundo a lógica aberrante do regime teocrático, perante um filme que é sem dúvida um dos melhores de todos os apresentados no Festival de Cannes 2024.
“The Seed Of The Sacred Fig” é um filme ambientado durante os protestos anti-governamentais ocorridos no Irão. Iman, juiz de instrução do tribunal revolucionário de Teerão, luta contra a desconfiança e a paranóia à medida que os protestos políticos se intensificam em todo o país, contra a morte, sob custódia policial, em 2022, de Mahsa Amini, uma jovem detida por uso “indevido” do hijab. O filme está repleto de imagens documentais da brutal reação policial que desencadearam as manifestações juvenis. É aliás é a reação e rebeldia dos jovens, que está na base do novo filme de Mohammad Rasoulof.
The Seed Of The Sacred Fig volta a revelar as atrocidades do Irão no Festival de Cannes
“The Seed Of The Sacred Fig” (“A Semente do Figo Sagrado”) é um título que alude à figueira sagrada, um arbusto cujas sementes crescem parasitando outras plantas e as árvores até as sufocarem. E isto funciona como uma metáfora para o que o regime iraniano faz com os seus cidadãos. No entanto, tudo o que este filme de Rasoulof contém, é muito mais direto e literal do que tudo resto.
Iman (Misagh Zare) um investigador judicial acaba de ser promovido a procurador, quando eclodem os protestos juvenis de 2022. Ele e a sua esposa Najmeh (Soheila Golestani) acreditam firmemente no discurso oficial, de que o Irão é vítima de uma conspiração global, e que qualquer crítica ao governo é um acto de terrorismo.
Pelo contrário a ideia que as suas duas filhas Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki) — jovens espirituosas em idade universitária e secundária, respectivamente — têm do país é de um sistema aberrante, baseado na obediência cega a Deus, onde reina o fanatismo e com um governo tirânico que o impõe a qualquer preço a repressão; e no qual é eliminada qualquer verdade que ponha em causa o discurso oficial.
Pelo meio, a cobertura televisiva oficial das manifestações juvenis de protesto vista à mesa das refeições, contrasta fortemente com as imagens gravadas com telemóvel assistidas pelas irmãs e mostram bem a brutalidade policial, introduzindo material documental recente da vida real e do efervescente momento político no Irão.
Dois eventos importantes levam à implosão da família. Um deles é o destino de Sadaf, amiga de Rezvan, apanhada no tumulto: relutantemente, a mãe Najmeh dá por si a cuidar da rapariga e a remover a bala da polícia, da sua cara ensanguentada. Depois o desaparecimento da arma que lhe foi atribuída, faz com que o patriarca Ivan se deixe invadir pela paranóia.
Desesperado para salvar sua carreira descobrindo quem o roubou, Iman pede ajuda a Alirezah, uma renomada interrogadora — cujo interrogatório Najmeh e às suas filhas são sujeitas e que é feito com os com os olhos vendados — numa das sequências mais perturbadoras e visualmente mais poderosas do filme.
Depois, a família deixa Teerão e viaja de carro, para descansar e aliviar as tensões, numa velha e familiar casa de campo, localizada numa aldeia em ruínas. É nessa altura que o filme, muito bem escrito em termos de argumento, faz uma inflexão incrível, em termos narrativos, e desenvolve-se no exterior, primeiro com uma fabulosa sequência de perseguição de carro, que introduz uma discórdia chocante.
E depois, na reta final, onde a paranóia de Ivan chega ao limite levando a brutalidade do regime para dentro da família e contra uma última manifestação desafiadora das mulheres, perseguindo-as em torno do labirinto de construções em ruínas.
Assim, o filme de Rasoulof tem duas partes: a primeira emocionante — entramos facilmente na intimidade desta família de classe média aparentemente de bem com aparelho e as regras impostas — quando mapeia tensões psicológicas num ambiente doméstico normal, que se vai transformando aos poucos em repressivo e claustrofóbico; a segunda parte e caminhando para o final em que o filme enquadra-se num fabuloso thriller sobre mulheres em perigo.
Com quase três horas de duração, a verdadeira arte do filme reside sobretudo na maneira como Rasoulof coloca progressivamente os membros da família uns contra os outros. No início vemos Iman como uma figura tutelar, um bom pai e marido, com sensibilidade e princípios, a mulher Najmeh como a verdadeira conformista da família, cuja posição só tardiamente começa a mudar quando começa a reexaminar sua lealdade como esposa, mãe e como cidadã.
As interpretações dos quatro protagonistas são absolutamente notáveis num registo naturalista que compensa a tendência para cair num melodrama familiar que repete formas e fórmulas do cinema iraniano. Além do interrogatório, outro dos grandes momentos de filme e que reflectem e resume a essência e oportunidade é quando Ivan visivelmente tenso e irritado, troca de olhar, com uma jovem no carro ao lado parado no semáforo: a bela rapariga de feições ‘medio-orientais’, usa cabelo curto, mostra o rosto sem hijab, escuta música dançante no rádio e olha para para ele com uma frieza desafiadora, como que dizendo que os dias da velha ordem islâmica, estarão certamente com os dias contados no Irão.
Dadas todas as circunstâncias e as inegáveis qualidades do filme está aqui provavelmente a Palma de Ouro 2024. A 77ª edição do Festival de Cinema de Cannes só termina amanhã, mas a entrega dos prémios vai realizar-se logo mais ao final da tarde, a começar às 17h45 de Lisboa, com a passadeira vermelha.
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Podem assistir à Cerimónia de Encerramento no site do Festival de Cannes e ao vivo e saberem que é a Palma de Ouro 2024 e os outros premiados. Vale a pena assistir!
The Seed Of The Sacred Fig, em análise
Movie title: The Seed Of The Sacred Fig
Movie description: Iman, um juiz de instrução do tribunal revolucionário de Teerão, luta mesmo no meio da sua família, contra a desconfiança e a paranóia à medida que os protestos políticos, contra a repressão se intensificam em todo o país, devido à morte, sob custódia policial, em 2022, de Mahsa Amini, uma jovem detida por uso “indevido” do hijab.
Country: Irão, França, Alemanha
Director(s): Mohammad Rasoulof
Actor(s): Missagh Zareh, Soheila Golestani, Mahsa Rostami
Genre: Crime, Drama
-
José Vieira Mendes - 90
Summary
O melhor: O sentido de oportunidade do filme, associado ao argumento e às interpretações dos quatro protagonistas que são absolutamente notáveis num registo naturalista, que nos fazem acreditar no que vemos.
O pior: Na parte final o clímax pode ser um bocadinho exagerado, mas na verdade mostra como o desespero e o fanatismo do regime, pode levar um pai e um marido exemplar, a trazer a repressão para dentro de casa.