Sicario – Infiltrado, em análise
“Sicario” é uma descida visceral e contemporânea ao submundo dos cartéis de droga; uma declaração feminista numa pintura sangrenta, aonde os homens medem o tamanho das suas armas ao arrepio da lei.
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Sicario – termo latino para assassino a soldo -, infiltra-nos na barriga dos grandes cartéis de droga mexicanos, por ação conjunta de uma mixórdia de siglas mais ou menos governamentais. Mas antes de calgarmos a fronteira americana em direção à “besta” de cidade que é (Juárez) -, aonde o local mais limpo é mesmo a morgue -, importa mormente fazer as honras da casa. A fita soturna de Denis Villeneuve, não desperdiça tempo com meias palavras ou palmadinhas nas costas, atinge-nos abrutamente com a fúria do coice de uma arma automática concebida para exterminar vidas. Kate Macer (Emily Blunt) é aquele típico rosto cristalino e quase inocente de uma operacional do FBI, sem estômago para corpos embalados em vácuo no fundo falso de uma parede. E ainda meio atarantados com as crateras balísticas da escaramuça visceral -, tentamos recuperar o fôlego (tal como Kate) -, enquanto é interrogada pelo machismo de uma mesa de reuniões liderada por um Matt Grever (Josh Brolin) impudente e com espírito de praia. “És casada? Tens filhos?” – engata Grever antes de seduzir Macer com um ingresso no inferno para ajustar contas com os responsáveis pelo anterior massacre no Arizona.
“A fita soturna de Denis Villeneuve, não desperdiça tempo com meias palavras ou palmadinhas nas costas, atinge-nos abrutamente com a fúria do coice de uma arma automática concebida para exterminar vidas.”
E enquanto a proposição de caçar o manda-chuva do cartel Sonora incita os machos a brincar aos “soldados da fortuna”, a novata deixa-se engolir pelo idealismo justiceiro da causa nobre. Num país dominado pelo cristianismo e pelo narcotráfico, até Deus tem necessidade de snifar umas linhas a direito para que a escrita saia mesmo torta. É neste chamamento curvilíneo que Alejandro (Benicio Del Toro) dá-se a conhecer como um pseudo promotor do ministério público, cuja aptidão escapa totalmente aos meandros da justiça argumentativa. Aliás, há uma cena em que ele interroga virilmente um prisioneiro, fazendo recorrência a técnicas de submissão pouco ortodoxas como se se tratasse de uma posição de acasalamento indesejada. Talvez, até seja adequado classificar esta operação secreta como um desporto só de homens, o que remete imediatamente para a pergunta sexista da participação de uma mulher neste teatro de guerra.
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O estreante argumentista Taylor Sheridan – o xerife adjunto em “Sons of Anarchy” – dá corpo a esta ideia de emancipação feminina num contexto militar, que ainda tenta gerir a paridade entre sexos. É intenção de Villeneuve, testar a capacidade de resposta físico-emocional de uma pessoa deslocada do seu habitat natural sociologicamente, mas ao mesmo tempo explorar as fragilidades inerentes à sua imutável condição de inferioridade. Contudo, à semelhança da sobrevivência de outras heroínas do mesmo género, Kate é uma espécie de Furiosa que não se assusta com a delicadeza da sua postura, sem necessidade de androginizar a sua imagem para equilibrar o prato da balança. E Emily Blunt consegue vestir tão bem a pele do carneirinho que convive com os lobos sem se deixar engolir por eles, afligindo a plateia com a mudez expressiva da sua linguagem corporal.
“É intenção de Villeneuve, testar a capacidade de resposta físico-emocional de uma pessoa deslocada do seu habitat natural sociologicamente, mas ao mesmo tempo explorar as fragilidades inerentes à sua imutável condição de inferioridade.”
Paralelamente, à medida que a caravana governamental arrepia caminho em direcção ao cerco mexicano, a cinematografia imagética de Roger Deakins (Este País Não É Para Velhos) vai-se entrelaçando com “borrões” paisagísticos aéreos, que descobrem e perseguem o pináculo do caos como uma pista de formigas telecomandadas prestes a descarrilar. Imaginem só: estarem engarrafados numa fila densa e numerosa de veículos a soluçar à entrada do Algarve, e serem cumprimentados por uma emboscada de gatilhos esmerados em trespassar os vossos dias à sombra da bananeira. E continuamos a ser massacrados a seco, sem dó nem piedade, com a desumanidade mais obscena do homem: as paredes dos morros baleadas como grafite urbano, corpos mutilados e crucificados como adornos publicitários no tabuleiro das pontes…Enfim, é a realidade nua e crua, que não parece compatibilizar-se com a benevolência da justiça normativa.
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E é mesmo na ferida jurisdicional, que a narrativa vai camuflando habilmente as suas intenções primordiais, enredando o espetador numa teia de interesses coadjuvados. Mas a verdade mais aterradora não é aquela em que os meios justificam os fins, é precisamente o contrário. Já dizia Edmund Burke que “para que o mal triunfe basta que os homens bons nada façam”, mas Sicario ensina-nos que tal afirmação resume-se a uma questão de pura semântica, já que existem monstros que só podem ser combatidos por figuras semelhantes; e Alejandro é esse anti-cristo necessário como uma vacina para a violência daquele mundo. De resto, nota-se que é neste tipo de papeis mais pesados e sombrios, que Benicio Del Toro sente-se como peixe na água. Apesar da maioria das suas intervenções ser pautada por um certo laconismo e contenção emocional metódica, ver e sentir o mercenário a desenjaular o seu animal interior é deveras empolgante.
“Em Sicario, não prevalece apenas a noção paradoxal num plano filosófico, o local onde decorre a ação fria e realista de Villeneuve está naturalmente carregado de um simbolismo anacrónico.”
A beleza do argumento de Sicario reside no caráter conflituoso das suas premissas basilares, na medida em que cada um dos intervenientes possui uma missão moral e ética enraizada nas suas convicções pessoais. Se por um lado temos a agente federal (Kate Macer) com uma abordagem mais académica da aplicação da lei, por outro temos o chefe de uma unidade das forças especiais (Josh Brolin) e um “Hitman” (Benicio Del Toro) com visões mais pragmáticas, que implicam a subversão das regras do jogo. De facto, parece que o realizador franco-canadense possui uma predileção pelo confronto de realidades duais e das suas manifestações mais perversas, a julgar pelos trabalhos mais recentes (Raptadas e Homem Duplicado). Em Sicario, não prevalece apenas a noção paradoxal num plano filosófico, o local onde decorre a ação fria e realista de Villeneuve está naturalmente carregado de um simbolismo anacrónico. Na alvorada, os capacetes de visões noturnas deambulam como sombras de patos furtivos ao sabor da percussão brutalmente aninhada de Johan Johannsson; e é na entrada para um túnel cavado entre as duas fronteiras vizinhas, que a equipa Delta relembra-nos como o palco dos Westerns ainda parece tão descabido sem os cavalos e os revólveres.
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Sicario é uma montanha russa de emoções poderosas, que pavimenta com mestria os pontos gritantes de adrenalina, sem nunca permitir algum tipo de preparação psicológica para o que vem a seguir. Apanha-nos assim, desprevenimos, puxa-nos o tapete quando pensamos que as águas ainda não estão demasiado agitadas. É impiedoso e calculista, mas não se reduz ao facilitismo hollywoodesco só por ser um filme que esgota alguns depósitos de balas. Ao invés, prefere lidar com temáticas polémicas e passar uma mensagem atual, libertando-nos do dogmatismo de uma verdade inconveniente. Em última análise, Sicario opera belicosamente em várias fronteiras, mas a mais relevante é a que promove uma disputa entre o bem e o mal, entre o que é certo e errado, entre o que deve ser, e o que tem de ser.
PS – Apertem o cinto para uma viagem diabólica…
MS
Muito interessante o comentário ao filme. Estou a lê-lo após o ter visionado e, como tal, a percepção está viciada. Mas o comentário espelha a realidade do filme e a mensagem subjacente que nos deixa da luta entre o certo e o errado, da moral em confronto com a vida sem lei.
Julgo contudo que o comentário aproxima-se perigosamente de um resumo do filme, tornando-se por isso algo extenso.
Parabens.
“Sicário – Infiltrado”: 5*
“Sicário – Infiltrado” é um filme veemente, cruel e algo cru mas muito realista e é por isso que é excelente.
“Sicario” vence pela sua lado técnico, onde destaco a sua realização e a sua direção de fotografia.
Cumprimentos, Frederico Daniel.