Sob a Chama da Candeia, a Crítica | André Gil Mata é novo mestre do cinema português
Depois de “A Árvore” e o “Pátio do Carrasco,” André Gil Mata regressa aos cinemas portugueses com o seu melhor trabalho até hoje – “Sob a Chama da Candeia.”
Algures no norte do país, a alvorada abate-se sobre uma povoação. Pelo olhar da câmara do realizador André Gil Mata e do diretor de fotografia Frederico Lobo, miramos o céu, uma igreja local. Mas sempre por detrás de um muro pintado com musgo e humidade, as marcas do tempo que não perdoa. Em contemplação paciente e sem cortes, a imagem vagueia, como uma dança que se faz pelo jardim privado e a que só nós temos acesso. Por instantes, quando nenhuma marca humana se manifesta no ecrã, quase podemos imaginar uma floresta de sonho além das barreiras que o muro marca, que a domesticidade exige, que a vida nos impõe. Os ciclos circulam infinitos, quiçá belos ou imperdoáveis, a câmara voa, flutua, e a flor rubra.
No entanto, rapidamente este fluido movimento chega à casa onde “Sob a Chama da Candeia” decorrerá, sem nunca sair da propriedade delineada pelo primeiro plano – um movimento que se repetirá na fita, como que partindo as suas meditações em capítulos. E desse surgimento ponderado pelo jardim passamos a interiores, na sua maioria em plano fixo, quadros tão belos quanto asfixiantes. Sente-se o peso da tradição sobre cada imagem, crucifixos nas paredes dos quartos e espelhos antigos cuja superfície imperfeita desfragmenta os reflexos em ondulações de luz e cor. O sol da matina perscruta os afazeres rotineiros de duas mulheres, coroando suas cabeças grisalhas com auréolas, quais nuvens de prata em torno dos seus rostos. Mata tudo captura com o olho de um pintor de grande lucidez, romantismos deixados de parte em prol da franqueza.
A poesia do dia-a-dia, a crueldade do tempo.
São elas Alzira, a dona da casa, e Beatriz, sua empregada de há muitos anos. Também aqui viverá Augusto, o marido da primeira mulher, mas demora até que a sua figura apareça em cena. Também muito demora até que alguma palavra seja proferida, com os ritmos silenciosos do quotidiano a tomarem lugar de primazia nas conceções cénicas de Mata. Há algo de Béla Tarr na sua abordagem, mas também um toque de Chantal Akerman, não fossem estas passagens uma simultânea apreciação do lirismo de cada dia e da crueldade que lhe é inerente. Alzira, não obstante a sua posição privilegiada em hierarquia de classes com Beatriz, é quase prisioneira numa existência expressa pela inação, o confinamento, o dever matrimonial.
Se Beatriz serve Alzira, esta serve Augusto que raramente sai da sua poltrona onde lê o jornal. Só se move para comer a refeição servida pela esposa, ou para sair, talvez para um emprego que nunca vemos. Há algo de ritualista no modo como Mata nos apresenta ao mundo de “Sob a Chama da Candeia,” uma invocação cerimonial que primeiro nos acorrenta à amargura do presente antes de nos puxar para um lugar mais indefinido. É que, entre as paredes do casarão, tanto o espaço como os objetos, os corpos e talvez até o ar, têm memórias do que já passou, do que foi perdido, sacrificado, do que se desejou mas nunca se alcançou, a esperança estilhaçada e a inocência quase esquecida.
Em jeito simbólico, a criança que Alzira já foi brinca com pássaros engaiolados, como que fitando a condição do seu futuro. Vemo-la nessa infantilidade, mas também numa juventude mais madura, quando tocava piano sob o olhar atento da pedagoga, da mãe. Vemos o pedido de casamento, os primeiros filhos, o clarão vermelho de um episódio em que os pequenos quase se perderam para a doença. Testemunhamos a promessa de um pai que foi para o Brasil e a vontade de descobrir o mundo que Alzira em tempos esboçou numa série de aguarelas. Não que alguma vez tenha visto as paisagens tropicais que pintou. Elas permaneceram miragens, fora do alcance, quase como provocações. Tal como a câmara e seu movimento regimentado, os quadros sublinham a inércia perpétua.
Sem se perder nos preceitos do filme de época – apesar de ótima cenografia que distingue o envelhecimento das superfícies em par com as pessoas – Gil volta a sugerir um Tarr português, mas também recorda o modo como Terence Davies tratava a insubstancialidade da barreira que separa o hoje de ontem. Num só movimento circular em torno da mesa de jantar, o gesto envelhecido converte-se na flor da juventude, passando do casal no fim dos seus dias à alvorada do seu matrimónio. Só que esta façanha não é particularmente gentil ou feita para chamar o deslumbramento do espetador. Existe apreço pela natureza cíclica da vida, é certo. Contudo, não há idealizações ou nostalgias. Pelo contrário, o mecanismo sente-se lacerante na sugestão de que Alzira tem feito o mesmo nos últimos sessenta anos, sempre silenciosa e subserviente em relação ao marido e à casa, ao papel que lhe foi dado.
Assim se afirma um mestre do cinema!
Apesar dos ritmos lentos deste estudo, Mata vai despertando-nos do transe, com tais floreados formalistas como a câmara à volta da mesa ou o sobressalto de mãos jovens a atacar o piano. Faz-se o contraponto entre o que foi, o que podia ter sido e o que é, com as sombras do lar a tomarem qualidades quase oleosas enquanto o comportamento da gente se torna tenebroso como quando Beatriz mata o gato quando lhe dá a comer cacos de vidro. Ou como, aquando da morte de Augusto, uma nova vitalidade floresce no lugar onde assumiríamos o luto. Nada de muito demonstrativo, mas os filhos adultos e os netos finalmente regressam à casa onde a mãe tem-se vindo a esvanecer e, pela primeira vez, Alzira parece impor a sua vontade – “Eu não aguento mais…eu só quero morrer em paz.”
“Sob a Chama da Candeia” não é daqueles projetos em que o trabalho de ator é posto num pedestal, mas Eva Ras merece uma ovação de pé pela sua criação, dando vida ao crepúsculo da protagonista com igual espaço dado à visceralidade e à poesia. Márcia Breia impressiona ainda mais como Beatriz, estando nas suas mãos alguns dos torcidos tonais mais arriscados da fita. Elas são sempre subalternas à mise-en-scène magistral, mas o projeto não funcionaria sem essas âncoras humanas, sempre a trespassar a realidade emocional do exercício e a orientar o espetador pelo meio das reticências estruturais com que esta narrativa nos é contada. São a alma de tudo, são aquilo que mais reforça a natureza pessoal e profundamente humana desta história de fantasmas e recordações.
Tudo culmina numa sequência assombrosa, quando todos os tempos imperfeitos que “Sob a Chama da Candeia” investigou se juntam no mesmo plano, um último passeio da câmara pela casa e máxima mostra de virtuosismo pela parte de Mata e Lobo. Se “A Árvore” viu o realizador numa deambulação noturna que parecia dar forma cinematográfica à imaterialidade do sonho, esta obra faz o mesmo com a memória. O registo é mais realista, mas não menos arrebatador ou surpreendente nas suas escolhas. É certo que a apresentação é severa e “Sob a Chama da Candeia” não agradará a todos os espetadores, mas, no que nos compete, trata-se de um dos grandes filmes portugueses do ano. De facto, André Gil Mata vem a confirmar-se como um dos autores mais interessantes do nosso cinema nacional.
Sob a Chama da Candeia, a Crítica
Movie title: Sob a Chama da Candeia
Date published: 10 de April de 2025
Country: Portugal
Duration: 109 min.
Director(s): André Gil Mata
Actor(s): Eva Ras, Márcia Breia, Catarina Carvalho Gomes, Dinis Gomes, Luísa Guerra, Gina Macedo, Manuel Nabais, Olívia Silva, Gisela Matos, Raimundo Cosme, Catarina Lacerda, Mateus Guedes, Kiko Mota, Francisco Oliveira, Mia Ester Coelho, Inês Oliveira, Ruben de Sousa, Vitor Pinho
Genre: Drama, 2024
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Cláudio Alves - 90
CONCLUSÃO:
A vida faz-se de memórias e arrependimentos, de esperanças e sonhos que se deixam para trás, de rotinas e ciclos, de felicidades efémeras e finalidades comuns a todos. A vida faz-se numa casa, confinada entre paredes que contêm em si os fantasmas daqueles que foram e partiram, deixando-nos. A vida faz-se de poesias domésticas e quotidianos tão sôfregos como belos. Tudo depende do olhar, e André Gil Mata tem um olho de artista na plenitude dos seus talentos. “Sob a Chama da Candeia” incorpora todas estas ideias num drama observacional nos arredores do Porto, um filme transe que é capaz de deslumbrar sem, no entanto, impor essa leitura ao espetador. Cabe a cada um tomar as suas conclusões sobre esta gaiola dourada. Uma coisa é certa – trata-se de um grande feito artístico.
O MELHOR: O trabalho de câmara, a qualidade estética que esbate tempos e dá caráter ao casarão. Tudo culmina naquela cena final, um assombro sem igual que dá vontade de nos levantarmos da cadeira no cinema e celebrar a fita com uma ovação de pé. Assim se faz grande cinema em Portugal!
O PIOR: Como nos filmes dos autores a que comparámos Mata ao longo desta crítica, há uma qualidade meio impenetrável no seu trabalho. “Sob a Chama da Candeia” não é difícil de entender, mas requer uma rendição aos idiomas cinematográficos que decidiu para si mesmo. Ou seja, impenetrável não será a palavra certa – exigente é melhor. E todos sabemos como experiências que exigem algo ao espetador tendem a desagradar muita gente.
CA