A Substância: Demi Moore e o tabu do envelhecimento feminino em Hollywood
Depois da sua estreia no Motelx em Setembro, A Substância regressa aos cinemas portugueses. Com uma convicção forte, o filme analisa como a beleza pode ser o melhor e o pior atributo das mulheres.
Sumário:
- O filme questiona o culto à juventude e a pressão sobre a aparência. Elizabeth, protagonizada por Demi Moore, usa uma substância que a torna jovem novamente;
- Com cenas grotescas, o filme explora o impacto dos padrões de beleza na vida das mulheres, mostrando como são levadas a procurar a juventude a qualquer custo;
- A Substância expõe a desvalorização de mulheres mais velhas e provoca o público a pensar sobre o preço de buscar a “melhor versão” de si mesmas.
“A Substância” é uma das últimas apostas da Mubi (e tornou-se no seu maior sucesso de bilheteira até à data). Com astúcia, empenho e, embora não pareça, delicadeza, a realizadora, Coralie Fargeat aborda o mito da beleza – a crença de que o valor da mulher está ligado à sua aparência – e o olhar masculino – uma forma de ver o corpo feminino como um objeto que deve ser apreciado exclusivamente por homens.
Elizabeth Sparkles, em licra e “bem conservada” é demasiado velha para a indústria que a viu nascer e, agora, lhe declara a data de óbito. Demi Moore, com coragem e num registo completamente diferente ao que estamos habituados, dá vida a esta personagem, uma atriz transformada em instrutora de aeróbica de um programa de televisão, que é afastada pelos grandes da indústria, os que comem camarão e nos mandam sorrir, sim esses.
As intenções de Fargeat em A Substância
“A Substância”, de Coralie Fargeat, foi uma das grandes revelações do Festival de Cannes deste ano, vencendo o prémio de melhor filme. A cineasta francesa presenteia os espectadores com um dos filmes de terror (mas acima de tudo horror) mais violentos do ano. Estreia nas salas de cinema portuguesas a 31 de outubro e promete ser o filme de Halloween mais horroroso e mais feminista que vão ver.
Com os seus cinquenta anos, Elizabeth encontra-se sem distrações e sozinha com os fantasmas de um passado, onde ela era a estrela mais brilhante e a mulher mais bonita. Agora, olha-se ao espelho e não encontra nada, pois, como frequentemente acontece com as mulheres, quando não encontramos beleza em nós mesmas, não encontramos mais nada.
Elizabeth não procurou a substância, podemos dizer até que a substância é que a procurou a ela. E esta tal substância permitia que um se tornasse duplo, mas sem nunca quebrar a unidade. O que é que isto quer dizer? Ao tomar a substância, Elizabeth tornar-se-ia, durante sete dias, na “sua melhor versão”, Sue: jovem, bonita, bem-sucedida, interpretada por Margaret Qualley. Nos sete dias seguintes voltava a ser ela mesma e assim sucessivamente.
Através de todo o horror nas transições, transformações e degradações do corpo, Fargeat, com pedagogia e bom gosto, deixa-nos uma mensagem importante: não existe nenhuma substância que, por mais atrativa, seja milagrosa. De nada adianta uma cara bonita, um corpo tonificado, a atenção dos homens, uma carreira de sucesso se o que está fraturado não se vê no espelho, mas sente-se na alma.
E de uma forma tão inteligente, tão inovadora, a cineasta deixa-nos com estas considerações, que se adensam com camadas satíricas de humor. “A Substância” deixa a descoberto a forma como a beleza é usada contra as mulheres.
O cinema anti-aging e anti-mulheres
Apesar de parecer um conceito fora da caixa, “a substância” está mais presente nas nossas vidas do que imaginamos. A indústria cosmética, uma das mais ricas, ensinou às mulheres a precisarem de algo – que só existia fora delas – para serem bonitas. Todos os produtos e procedimentos que as mulheres se veem “contagiadas” a comprar e a fazer operam no seu íntimo como uma substância que separa o físico do espiritual e as destrói gradualmente.
O filme retrata todos estes estímulos exteriores de uma forma acentuada através de injeções, vómitos, hemorragias, alimentação, automutilação e transformações violentas e grotescas do corpo para criar tensão psicológica e repulsa, deixando ao espectador espaço para refletir sobre o impacto da mitificação dos ideais de beleza. Acima de tudo, como socialmente somos devotos a uma religião que nos diz que uma mulher subjuga-se, quer-se mais nova, menos exigente, sem rugas.
“A Substância” suscita pensamentos provocatórios, mas necessários, sobre as mulheres enquanto produto com data de validade. A obra contribui para um movimento construtivo que normaliza e aprecia atrizes mais velhas e atrizes que não correspondem aos ideais de beleza na experiência de blockbusters, não as aprisionando a narrativas e géneros de nicho do cinema.
Depois dos 40, 80% dos papéis de protagonista vão para homens, em filmes geralmente feitos por homens. Fargeat dá-nos exatamente o oposto e é por isso que é tão refrescante, ainda que difícil de ver. Obriga-nos a ter mais respeito pelo corpo e uma consciência mais ativa, no que diz respeito ao modo como as regras e normais sociais condicionam a auto-perceção.
O fim da dosagem d’A Substância
“A Substância”, para além de todo o horror gratuito e estética cuidada, deixa-nos uma simples lição sobre uma verdade complexa. O que não encontramos dentro de nós, não existe – “You are the matrix”. A realizadora leva isto ao extremo, onde até uma narrativa se perde na ausência das suas personagens. O problema de estarmos perante a nossa melhor versão é que não vamos querer abdicar dela. Uma coisa é certa, ela far-nos-á abdicar de nós próprios, possivelmente até à destruição.
Assim, depois de duas horas e vinte de gore, mensagens feministas subliminares, atuações firmes, “a substância” deixa pouco para a imaginação. Às vezes, o cinema tem de ser isso mesmo: um lugar desconfortável demasiado próximo do ecrã.
Sozinho ou acompanhado, não percas a oportunidade de ir ver um dos filmes mais falados do ano.