Táxi Sófia, em análise
“Táxi Sófia” é um retrato fascinante sobre a crise social e de valores sociais que afeta a capital da Bulgária.
“É para onde?”, pergunta o/a taxista. “É para uma sala de cinema, por favor”. responde o passageiro. Provavelmente será este o início da sua conversa com o taxista que o levará até uma sala de cinema específica para assistir a “Táxi Sófia”. O filme, mesmo assim, não se passa nas ruas da capital lisboeta, nem tão pouco nas ruas das outras cidades do nosso Portugal, mas poderia. Como o seu próprio nome indica, o novo filme do cineasta Stephen Komandarev, que estreou na secção “Un Certain Regard”, do Festival de Cannes deste ano, é um retrato intrigante e esmagador sobre a dura e crua realidade vivida por estes profissionais na capital da Bulgária. Bulgária que não é somente um dos países mais pobres da União Europeia (cuja adesão aconteceu a 1 de janeiro de 2007, juntamente com a Roménia), como também um país que nos últimos tempos tem vindo a assistir a crise social (económica e financeira por acréscimo) e, por isso, de valores sociais.
A trama de “Táxi Sófia” cruza, em episódios, a vida de várias pessoas, em diferentes viagens de táxi pela capital da Bulgária. O momento inicial envolve precisamente uma conversa banal entre um taxista, Misho (Vassil Vassilev) e a sua filha, depois uma conversa deste mesmo taxista com uma jovem prostituta, e, em seguida, um ato de desespero deste taxista, que desponta um debate intenso a nível nacional. A verdade em que a vida de cidadãos anónimos que apanham um táxi, é pautada por este acontecimento, que se faz presente nos comentários ouvidos através da rádio. Descrevem um país em crise, e das pessoas que nele habitam, arrogantes ao ponto de se sentirem como deuses na Terra. É tal e qual como um dos passageiros acaba por dizer à taxista: o Estado “está morto”, não existe.
Não queremos aqui tecer juízos de valor do ponto de vista político sobre o país e sobre uma realidade que pouco conhecemos. Mesmo assim, vale a pena salientar que o filme parece estar preocupado em captar, mesmo que mediante um acontecimento trágico e inesperado, que do outro lado do oceano seria próprio de um plot hollywoodesco, a banalidade rotineira destes taxistas. Conversa puxa sempre conversa sobre aquilo que os rodeia. Fala-se de amor, de devoção, mas a ferida que faz o país sangrar abre-se ainda mais quando se cruzam com sujeitos completamente esvaziados de sentimentos, que agem na perfeita indiferença e ignorância para com taxistas com uma atitude mais ou menos fraterna.
A partir de dentro de um automóvel, vamos descobrindo as ruas com gente, ou outras vazias, vemos as fachadas dos edifícios habitados por essa mesma imensidão de gente e ouvimos os seus barulhos, numa completa sinfonia. Stephen Komandarev não filma com interesse em chamar o espetador a visitar Sófia. Não há aqui qualquer visão turística sobre os locais mais emblemáticas da cidade. A Sófia de (as cenas são sempre filmadas com câmara à mão, algumas até são planos-sequência bastante longos) é pobre, e tenta sobreviver dessa forma, quase como como uma maçã podre prestes a ser deitada para o lixo. Mesmo assim, o retrato de Komandarev diz-se optimista, porque nesta vida de todos os dias, há uma sociedade, ou taxistas, que procura algo mais, que ambiciona, e que sonha.
E curiosamente, esta luta diária por melhores condições de vida, ultrapassa os membros das classes mais baixas, e diz também respeito a outros indivíduos, aqueles com altos níveis de instrução. Este não é apenas um espelho social de alguns, mas é o retrato de uma nação corrompida e fragilizada na sua coletividade. Por aqui, qualquer espetador pode identificar-se com a trama.
Quando Komandarev vê além das particularidades citadinas búlgaras, podemos encontrar algo que transcende qualquer tipo de fronteiras. Existem certas questões que dizem respeito a todos os países membros da União Europeia, nomeadamente quando o filme chama subtilmente à atenção aos problemas sociais relativos à vinda de refugiados. Não será despropositada esta referência, uma vez que “Táxi Sófia” é tão somente uma manifestação impressionante sobre o medo mais latente em qualquer um de nós: o medo do estranho. Obviamente, essa estranheza que domina nas relações humanas não é mais brilhantemente personificada quando se trata da relação entre qualquer taxista e qualquer passageiro.
Nestes paralelismos e confrontos que o filme convoca, não poderá ser mais evidente o confronto entre a vida e a morte. Toda a mutação que Stephen Komandarev quer que Sófia passe revela-se no seu filme mediante a lógica de passagem, por um fim de um estado e início de outro. A intermitência desta interrogação faz-se ao reenviar à questão da religião, aliás num dos episódios o taxista é também um padre. O filme é quase um não crente em si mesmo, para no final contrariar-se a si mesmo e dizer que afinal a esperança e o otimismo são possíveis.
Sobre essa leitura de “Táxi Sófia”, a mudança é possível quando o filme se demonstra empenhado na reconversão. “Táxi Sófia” acentua a reconversão dos indivíduos pessimistas a optimistas, a reconversão de pagãos a crentes, e a reconversão dos ideais corruptos para outros mais justos. No final a reconversão acontece também por uma passagem da noite para o dia. E são exatamente os táxis e os seus motoristas, enquanto força vital da cidade, que acompanham as mudanças. Talvez seja preciso dar algum tempo antes de apanhar um outro táxi para regressar a casa.
Táxi Sófia, em análise
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Virgílio Jesus - 80
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Rui Ribeiro - 85
Um resumo
Táxi Sófia é um retrato cativante e profundo sobre gentes normais com problemas normais da vida quotidiana. O espetador conhece uma sociedade corrompida de valores, que morre e que renasce com o novo coração.
O MELHOR: O transplante de coração que assistimos metaforicamente e que diz respeito às mudanças que Stephen Komandarev procura na sua sociedade búlgara.
O PIOR: Por vezes a dimensão episódica da intriga não favorece algumas das histórias que são contadas.
VJ