The King, em análise
Timothée Chalamet é Henrique V em “The King”, uma produção australiana que estreou no Festival de Veneza antes de chegar à Netflix.
Desde que Shakespeare levou à cena a sua Henriada, a tetralogia que começa com “Ricardo II” e termina com “Henrique V”, a história do príncipe Hal tem vindo ser recontada ao longo dos séculos. Com o advento do cinema no crepúsculo do século XIX, o monarca inglês e sua lenda lá chegaram aos grandes ecrãs. Famosamente, Laurence Olivier reformatou o texto do Bardo e fez de “Henrique V” uma peça de propaganda britânica. Orson Welles direcionou o foco para a figura secundária de Falstaff e fez do príncipe tornado rei uma cifra cruel. Kenneth Branagh foi nomeado para o Óscar pelo seu Henrique, e Tom Hiddleston cimentou a sua celebridade com uma versão televisiva.
Através de todas estas permutações, o verso de Shakespeare e sua configuração da biografia do antigo rei têm-se mantido mais ou menos constantes. Contudo, chegou a vez de mais um bravo ator encarnar Henrique V em frente à câmara e, desta feita, as palavras de Shakespeare foram deixadas para trás. Esta já não é uma história de discursos gloriosos e flor doirada da palavra declamada. Agora, o conto é uma tapeçaria de vísceras e sangue, de lama e gritos, desespero humano, mentira e engodo. “The King” é a história clássica refeita aos gostos de audiências mais acostumadas a “Game of Thrones” que à fortuna dos palcos.
Timothée Chalamet é o Henrique V de 2019 e sua interpretação do grande papel é esculpida ao seu talento e específica persona. Longe da força imperiosa que outros atores trouxeram à personagem, este jovem americano é um miasma de trejeitos febris e sussurros asfixiados. Isto não é uma crítica contra essas escolhas, somente uma observação. A tetralogia de Shakespeare é a saga de um príncipe libertino a tornar-se num rei lendário, do humano a transfigurar-se no divino e imortal. Quando Chalamet veste a coroa, nunca vemos um ícone distante, mas sim o príncipe numa perpétua luta por se afirmar. Primeiro, é o pai cruel que ele tenta impressionar e, mais tarde, é a memória do patriarca que o atormenta e motiva.
A juventude do rei raramente é evidenciada nos seus retratos mais famosos. Em oposição a tais antecedentes, Chalamet faz dessa meninice a principal característica da personagem. O ator não está só nos seus engenhos, visto que o realizador David Michôd tudo faz para sustentar tal interpretação. O filme está sempre em sintonia tonal com o seu herói, sua soturnez um reflexo do peso que Henrique parece sempre carregar. Em semelhança, quando Chalamet se desfaz em gritos coléricos, também as trevas do filme dão lugar a robustos epítetos de violência.
E que violência. A guerra de “The King” não é o cortejo militar de Olivier nem é o apocalipse humano de Branagh. Há algo de sanguinário no modo como os cineastas aqui filmam a carnificina, como que exacerbando seus mais desajeitados gestos. A lama é uma constante, assim como o ofegar trabalhoso do soldado cansado e a cacofonia do metal a bater contra metal. Nada disto sugere uma experiência particularmente agradável e o facto é que “The King” é cansativo na sua monotonia tonal. É consistente, mas é também entediante.
O mesmo se pode dizer do ator principal, temos pena de dizer. Chalamet é impressionante no seu empenho, só que o resultado final nunca transcende o esforço que o produziu. Há algo de penoso na performance, uma extravagância de severidade que acaba por ser mais falsa que convincente. A maior parte do elenco segue o mesmo caminho, com algumas exceções. De facto, a maior parte da produção gosta de se deixar cair nas indulgências da portentosa miséria e lamacento prestígio. A fotografia parece uma pintura de Rembrandt esvaída de vida, a cenografia é escura e amorfa, enquanto os figurinos sacrificam requinte medieval em nome de uma simplicidade facilmente engolida por audiências ingénuas que pensam que cores escuras são sinónimas de realismo.
Com tudo isso dito, há sempre a exceção que prova a regra. Como já mencionámos, alguns membros do elenco recusam a solenidade performativa de Chalamet e Michôd e buscam algo mais colorido. Nesse respeito, parece que todos os atores que dão vida à corte francesa foram dirigidos por um realizador diferente e seguiram um texto mais inspirado. Robert Pattinson é o delfim de França, uma criatura obscena e monstruosamente arrogante cuja sede por sangue é entrecortada pelo absurdo da sua pretensão. O ator tem só meia dúzia de cenas e faz o melhor com a matéria prima que lhe é concedida. Com um sotaque estapafúrdico e uma galanteria grotesca, Pattinson rouba o holofote a Chalamet e nunca o devolve.
Como a princesa francesa e futura esposa de Henrique, Lily-Rose Depp também é uma força da natureza em cena. Ao invés de abordar o papel com a vistosa indolência de Pattinson, a atriz subsume-se a uma presença quase etérea. É através dela que o filme expõe os seus temas mais complexos e arriscadas teses. Toda a monarquia é ilegítima e a guerra é uma futilidade concebida por homens em busca de poder. Quando ela aparece, o resto do filme ganha forma e “The King” realmente se afirma como uma subversão interessante da Henriada. O problema é que ela praticamente só tem uma cena e demora duas horas a manifestar-se, resultando num exercício meio simplório de provocação vazia. Há sangue e há lama, há muita miséria como já dissemos, mas há pouca razão para a sua presença que não as tendências do gosto moderno e a falta de inspiração dos cineastas.
The King, em análise
Movie title: The King
Date published: 14 de November de 2019
Director(s): David Michôd
Actor(s): Timothée Chalamet, Joel Edgerton, Ben Mendelsohn, Sean Harris, Robert Pattinson, Lily-Rose Depp, Dean-Charles Chapman, Thomasin McKenzie, Thibault de Montalembert
Genre: Biografia, Drama, Guerra, História, 2019, 140 min
-
Cláudio Alves - 60
-
José Vieira Mendes - 65
CONCLUSÃO:
“The King” tem os seus momentos, mas esta Henriada à moda de “Game of Thrones” desilude mais do que impressiona. Chalamet bem se esforça, mas é no elenco secundário que brilham as verdadeiras estrelas do filme.
O MELHOR: Pattinson e Depp, um bobo coroado e uma ninfa profética. Eles são os únicos membros do elenco que parecem entender que o filme precisa desesperadamente de leveza e variação tonal.
O PIOR: O abandono do verso Shakespeariano e o modo como “The King” arruína a personagem de Falstaff. Joel Edgerton é, por conseguinte, o ator mais desapontante de todo o edifício fílmico.
CA