The Shrouds – As Mortalhas, em análise | A procura de uma felicidade eterna
David Cronenberg chega com mais um novo filme. “The Shrouds – As Mortalhas” estreia já no próximo dia 1 de maio nas salas de cinema portuguesas. Protagonizado por Vincent Cassel e Diane Kruger, esta é mais uma longa-metragem ao estilo “negro” e “pesado” a que o realizador já nos habituou. A obra conta-nos a história de Karsh (Cassel), um empresário na área da tecnologia que, após a morte da sua mulher Becca, compra um cemitério e um restaurante adjacente como forma de lidar com a perda. Certo dia, o cemitério é alvo de profanação e cabe a Karsh perceber o porquê…
Os mistérios de Cronenberg mantém-se em “The Shrouds – As Mortalhas”
Se procuras um filme sem pontas soltas, então este não é um filme para ti. No entanto, para quem conhece minimamente a obra de David Cronenberg, sabe que os seus filmes têm sempre suspense e areias movediças. Sem contar o desfecho da narrativa, alerto já o futuro espectador que, quando nos estamos a aproximar do final, ainda há mistérios por desvendar (e será que desvendamos tudo?). Nem tudo o que parece é… Ainda assim, não é claro o desfecho da nossa personagem principal Karsh (interpretada por Vincent Cassel), ainda que, segundo o realizador, a sequência final seja um sonho…
A importância de um bom começo
“The Shrouds – As Mortalhas” é daqueles filmes que nos prendem logo nos momentos iniciais. É impossível não sentirmos logo alguma empatia com Karsh. Cronenberg inicia o filme com mestria, ao fazer um fabuloso corte de montagem entre um sério grito de dor e uma boca aberta no dentista. Dentista este que será relativamente relevante para a ultrapassagem da dor do nosso protagonista. Em apenas 2 minutos está apresentado o centro da narrativa do filme e a nossa personagem principal.
E os genéricos, que são tantas vezes desvalorizados? Neste filme estamos perante um genérico – tanto o inicial como o final – que é “simples” mas muito bem pensado. O etéreo da vida, conseguido com efeitos visuais de luzes é, efetivamente, o centro deste filme. A vida para lá da morte e a morte que fica na vida.
Tudo é pensado ao pormenor
Em 2024 tivemos também no Festival de Cannes “Megalopolis” de Francis Ford Coppola. Ainda que sejam dois filmes bastante diferentes – “Megalopolis” apresenta-se como um sinal de esperança, enquanto “The Shrouds – As Mortalhas” é bastante mais negro, ainda que também tenha alguns décors luminosos… – há-que reparar em alguns pontos em comum.
Em primeiro lugar – e logo notório -, é o facto de ambos os protagonistas perderem as suas esposas e quererem perpetuar as suas vidas. No entanto, e muito mais importante, nota-se em ambos os filmes um trabalho muito grande e de rigor no que aos décors diz respeito, por exemplo. Há toda uma estética de formas arquitetónicas que ambos os filmes nos trazem com muita mestria. É impossível não ver beleza nos vidros do restaurante de Karsh, por exemplo. Ou nas lápides alinhadas de forma tão linear.
Outro fator importante é que, tanto Coppola como Cronenberg perderam as suas esposas. Coppola dedica mesmo “Megalopolis” à sua esposa Eleanor. Cronenberg não o faz mas não deixa de ser algo que faz todo o sentido relacionar com este filme, algo que ele próprio admitiu aquando da conferência de imprensa do filme em Cannes: “É um projeto extremamente pessoal para mim. Quem me conheça saberá que partes são autobiográficas.”, referiu Cronenberg.
A (in)segurança da tecnologia
Depois, há ainda a questão da tecnologia; algo comum em obras anteriores do realizador: desde “eXistenZ” (1999) a “Mapas para as Estrelas” (2014), por exemplo. Tanto em “Megalopolis” como em “The Shrouds – As Mortalhas” a tecnologia está presente. No entanto, Cronenberg peca um pouco porque quase que diz ao espectador: “Olhem, está aqui um smartphone. Olhem, está aqui um carro com um ecrã interativo.” Sim, os aparelhos fazem parte da narrativa. Mas sentem-se, por vezes, algo forçados, a chamarem a sua atenção. Ainda assim, a presença da avatar de IA Hunny é um ponto positivo e fulcral do filme, algo onde a tecnologia funciona bem e que tem impacto no protagonista.
É claro que o filme também aborda ainda a tecnologia do ponto de vista do seu poder e da sua insegurança. A tecnologia como utilidade (não só meramente funcional, como com os smartphones e os ecrãs – coisa menos conseguida, a meu ver -; mas sobretudo como forma de perpetuar – embora de forma algo macabra – os mortos, nas suas mortalhas) mas também como forma de criar teorias da conspiração (familiares, no caso de Terry e Maury; mas também mais universais como a ideia dos russos) e de ataque perante os utilizadores. E isso é, ainda assim, algo importante no filme e que é relevante de discutir agora, no presente.
Duplos em “The Shrouds – As Mortalhas”
Falando em Hunny é impossível não falar do facto de que Diane Kruger interpreta três papéis neste filme, fazendo com que o filme ganhe um significado bastante mais forte e interior. Diane Kruger interpreta a falecida esposa de Karsh (em sonhos e/ou projeções da memória), Becca, a sua irmã (“são tão parecidas” diz-se no filme) Terry – que, mesmo assim, não é gémea – e ainda faz a voz de Hunny. Toda esta duplicidade (ou triplicidade) contribui para que o filme ganhe contornos obsessivos e que, com isso, a ultrapassagem da dor de Karsh seja bastante mais difícil.
E, claro, Vincent Cassel é verdadeiramente um duplo do realizador. Para lá da relação real/ficção da perda das mulheres, ambas com cancro, é notório o lado mórbido de Karsh – temática muitas vezes presente nos filmes de Cronenberg. É, inclusive, impossível não pensar num filme mais antigo do realizador, “A Mosca” (1986). Se em “A Mosca”, Seth (Jeff Goldblum) se metamorfoseava e ia ficando com o corpo cada vez mais quebrável, em “The Shrouds – As Mortalhas” o corpo de Becca vai sendo decepado à medida que vai ficando cada vez mais quebrável.
E o Dr. Jerry Heckler? Será que existiu mesmo? Será que Becca foi tratada pelo Dr. Heckler ou pelo Dr. Rory Zhao? Só vemos Heckler morto e é Zhao quem conta pormenores de Becca a Karsh. Para lá da paranoia do seu ex-cunhado Maury (interpretado por Guy Pierce), Heckler é, efetivamente, uma personagem misteriosa, sobretudo quando é desvendado que foram acrescentados dispositivos aos ossos de Becca…
Ficção científica? Sim, há algo de ficção científica neste filme, mas “The Shrouds – As Mortalhas” é sobretudo uma análise metafísica da nossa condição humana. Não é uma obra necessariamente ambientada num futuro próximo (a não pela invenção das mortalhas digitais), mas sim no agora e é agora que é importante refletir sobre ela.
The Shrouds - As Mortalhas
Conclusão
- David Cronenberg mantém em “The Shrouds – As Mortalhas” um estilo pessoal muito próprio. Mais do que um filme de ficção científica, é um drama sobre a nossa própria condição humana enquanto vivos e para lá da morte. Não se trata de uma obra-prima do realizador. Ainda assim, é um filme importante a ver e que nos traz questionamentos universais sobre a vida e sobre a tecnologia.