ArteKino ’18 | Those Who Are Fine, em análise
“Those Who Are Fine” é uma experiência em perturbadora alienação suíça. Este é um dos filmes disponíveis no festival online ArteKino.
Não há lugar mais frio e desumano que Zurique. Pelo menos, é essa a ideia transmitida por “Those Who Are Fine”, a primeira longa-metragem do cineasta suíço Cyril Schäublin, um prodígio de rigor formal que aqui exibe as capacidades alienantes desse talento. Até Antonioni, mestre do desespero existencialista em cidades esvaziadas, encararia o inferno de betão modernista desta Zurique como um pesadelo excessivo de alienação alienígena.
Pelo menos, as monstruosidades urbanas do mestre italiano eram filmadas com beleza, tornando o seu veneno existencialista tão mais forte pelo seu apelo estético. Schäublin não faz tais concessões ao prazer do olho, preferindo pintar tudo em tons de cinza e escolher composições que até nos negam a mercê de ver o céu. Aqui, a câmara está quase sempre apontada para baixo, reduzindo o ser humano a formigas observadas por uma divindade enojada pela mesquinhez destes seres insignificantes.
A cidade é feia, é fruto de placidez digital sem interesse ou o esquálido reconforto de um detalhe humanizante. Através da monstruosa rigidez da mise-en-scène e da paleta cromática de cinzentos pouco contrastados típicos de uma captura digital, até o parque municipal parece sem vida. Mesmo as árvores que cambaleiam ao vento parecem espectros estéreis. Os humanos que por este labirinto modernista andam não só são escassos e formigas, como também são espectros. São como as árvores sem vida.
Certamente não são personagens, pois, apesar de ter uma narrativa entendível, “Those Who Are Fine” podia ser facilmente caracterizado como um exercício em extração de personalidade tanto das pessoas em cena como do seu ambiente. Todas estas figuras humanas não são pessoas ou personagens, simplesmente fragmentos refratados e perdidos no éter de outras obras. Vazios e sem referente que lhes dê significado próprio. Nada disto é necessariamente mau, somente estranho e peculiar.
A certa altura, até a natureza fílmica do exercício é posta em causa quando o realizador usa filmagens de câmaras de segurança, construindo ainda mais dissonância e distância entre o espectador e a estranheza do que se passa no ecrã. Tal como o filme que inúmeras figuras dentro da narrativa tentam recordar, mas nunca conseguem nomear, “Those Who Are Fine” vive no equilíbrio entre a estranheza e a incompreensão. Isto confere uma qualidade quase onírica aos procedimentos do enredo, um toque de surreal.
O começo da obra certamente sugere um surrealismo solene. Junto à água que serve de fundo ameaçador, numa composição desequilibrada, três conhecidos trocam palavras entre si. O idioma de escolha parece ser de origem árabe, mas nunca sabemos de certeza. O que sabemos é o que mulher fala em relação a um esquema fraudulento contra idosos. Tais vigarices são exploradas no filme em si, compondo a narrativa simples, mas obscurecida pela mise-en-scène alienante e pelos mecanismos de formalismo rigoroso e desumano.
Desumana é a autora desses crimes, sendo que, como todos os atores do filme, a jovem Sarah Stauffer nunca pode sair de um registo de apatia inexpressiva. Assim sendo, nunca somos convidados a entender as atitudes de Alice, a fraudulenta em questão, nem mesmo quando esta encontra uma das suas vítimas num dos momentos mais fascinantes e perturbadores da fita. É claro que não há grande razão para Alice se comportar como se os seus comportamentos fossem estranhos ou extremistas. Afinal, neste mundo de Zurique fantasma, tais atitudes parecem ser a norma.
Basta olharmos para o emprego legítimo de Alice, num call center. Nesse quartel de trabalhadores anonimizados, leva-se a cabo uma versão mais legal e socialmente aceite de práticas fraudulentos e do desfalque do cidadão ingénuo o suficiente para se deixar levar pelas palavras das sanguessugas de telefone. Noutra ocasião, vemos uma cidadã idosa sozinha, abandonada no meio da rua, perdida. Os polícias não ajudam, ninguém lhe presta atenção, só mesmo a jovem que quer usá-la como mealheiro em forma humana.
“Those Who Are Fine” é um título bem irónico para esta crónica de inércia desumana e inação contemporânea. O mundo que representa é impiedoso e esvaziado de significado, talvez por isso tantas pessoas se interroguem em relação ao título desse já mencionado filme que todos viram, mas não conseguem nomear. Sem sentido, sem rumo e sem valor, para que é que se vive neste mundo? Não há razão ou propósito, só mistério. O filme só isto sugere sem nunca articular ou resolver. É frustrante, dá raiva e anestesia. Talvez seja essa melhor maneira de viver, anestesiado e sem emoção. Como Alice.
Those Who Are Fine, em análise
Movie title: Dene wos guet geit
Date published: 3 de December de 2018
Director(s): Cyril Schäublin
Actor(s): Sarah Stauffer, Nikolai Bosshardt, Fidel Morf, Liliane Amuat, Daniel Bachmann, Daniel Binggeli, Pascale Birchler, Belgouidoum Chihanez, Chloé Dudzik, Patric dal Farra, Ivan Georgiev, Margot Gödrös, Toni Majdaladi, Bruno Meier, Hanspeter Meier
Genre: Drama, 2017, 71 min
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Cláudio Alves - 70
CONCLUSÃO
“Those Who Are Fine” é um filme que talvez funcionasse melhor como uma curta assumida e não como uma tortuosa longa-metragem. Suas ideias são fascinantes, se ligeiramente desesperantes, mas o que realmente impressiona é o rigor formal da sua conceção estética.
O MELHOR: O rigor formal é merecedor de admiração.
O PIOR: O rigor formal é impressionante, mas também sufoca e oprime o espectador. Tal horror é deliberado, mas não deixa de ser incomodativo.
CA