O Último Duelo | Entrevista ao autor norte-americano Eric Jager
A MHD esteve em conversa com Eric Jager, escritor e especialista em literatura medieval que escreveu “O Último Duelo”.
“O Último Duelo” é um dos filmes mais esperados de 2021. Não porque Ben Affleck e Jennifer Lopez deram um show de romance e beijos mascarados na última edição do Festival de Veneza. Mais importante do que isso, “O Último Duelo” marca o regresso de Ridley Scott às produções históricas e medievais – foi ele o responsável pela realização de “Gladiador” (2000) e “Robin Hood” (2010), ambos protagonizados por Russell Crowe -, e trata-se do primeiro filme deste cineasta a ser lançado em sala durante este ano – “Casa Gucci” é o segundo e estreia brevemente. Não é fácil ter 83 anos e realizar dois filmes tão particulares nas suas tramas, mas com muitos pontos em comum: Adam Driver, a forte presença feminina e o facto de ambos filmes serem adaptações literárias de obras aclamadas, sobre intrigas popular e historicamente marcantes.
Precisamente para “O Último Duelo“, Ridley Scott realiza um argumento escrito por Nicole Holofcener, Ben Affleck e Matt Damon, baseado por sua vez no livro do mesmo nome de Eric Jager. Foi com este crítico e conceituado escritor de obras medievais que a MHD esteve à conversa para falar do filme e também para desvendar-nos os segredos por detrás de um episódio controverso, decorrido durante a Guerra dos Cem Anos ( 1337 a 1453). Resumidamente, porque a história é realmente complexa, “O Último Duelo” transporta-nos para um duelo armado entre o cavaleiro Jean de Carrouges (Matt Damon) e o escudeiro Jacques Le Gris (a quem dá vida Adam Driver), que foi acusado de ter violado a esposa do cavaleiro, a nobre aristocrática, Marguerite de Carrouges (Jodie Corner).
O Último Duelo é baseado no livro de Eric Jager
Com título português, “O Último Duelo – Crime, Escândalo e Justiça na Idade Média” (está atualmente disponível no no Marketplace da FNAC Portugal), o romance foi traduzido para mais de 20 línguas e foi considerado o “Livro do Ano” em 2005 pela Radio France e BBC Radio. Depois da 20th Century Studios ter adquirido os direitos de adaptação em 2019, Eric Jager foi contratado como consultor do argumento, onde estendeu a sua investigação e até recomendou algumas alterações, mesmo antes do início da produção do filme, que teve lugar em fevereiro de 2020.
Eric Jager não é um autor qualquer, que decidiu investigar as histórias a fundo. O autor é um verdadeiro mestre nos acontecimentos medievais, sendo responsável por lecionar a cadeira de Literatura Medieval no departamento de inglês da UCLA desde 1996. O seu trabalho em “O Último Duelo” envolveu uma séria de pesquisas nos mais privilegiados arquivos franceses, como os arquivos de Paris e o os arquivos regionais na Normandia. O seu nome surge também associado a revistas académicas e a várias conferências, porque Eric Jager gosta de partilhar a sua paixão com o público, com aqueles que quer conhecer mais sobre a Europa do passado, e sobre os comportamentos dos nobres.
A entrevista com Eric Jager, é uma forma de ajudar os espectadores a perceber que a reflexão sobre objetos cinematográficos inspirados em histórias verídicas tem que ir além da sala de cinema, não se fecha naquele espaço escuro onde obviamente fantasiamos os acontecimentos. É preciso pensar um pouco sobre todo o material factual existente sobre determinada episódio, e é necessário entender as fontes primárias, sem se deixar levar por mentiras ou convicções acesas de certos autores. É nisso que “O Último Duelo” de Ridley Scott se distingue de muitos outros projetos, pois houve um acompanhamento constante de Eric Jager na redação do argumento e, posteriormente nas filmagens.
MHD: Ainda se lembra da primeira vez em que ficou interessado na história da Marguerite de Carrouges e no facto de ter sido violada por Jacques Le Gris?
Eric Jager: Deparei-me pela primeira vez com a história da Marguerite numa crónica medieval escrita pelo Jean Froissart, que tem seis ou sete páginas sobre o episódio. Fiquei surpreso com o relato dele e realmente pensei, isto daria um ótimo filme! Depois pensei: “será que existe um livro sobre este caso?”, porque queria saber mais pormenores. Senti que essas seis ou sete páginas da crónica, embora emocionantes, deixavam muitas perguntas por serem respondidas. Coisas que o escritor deixou propositadamente de fora. Quem eram essas pessoas e quais as suas histórias e assim por diante? Então comecei a investigar.
A noção de que Marguerite de Carrouges pode ter mentido, e que alguns alegaram, parecia muito improvável, afinal a sua história, conforme transmitida no seu tão detalhado depoimento no Parlamento de Paris, era convincente. Depois de ler o seu testemunho, fiquei convencido por saber que estava a dizer a verdade. Tentei dar a oportunidade à Marguerite de contar a sua história primeiro. Para mim, cheguei à conclusão clara de que a Marguerite disse a verdade, portanto o meu livro está de alguma maneira a corrigir uma certa injustiça referente à sua imagem.
Em termos práticos, será que nos poderia contar como decorreu a sua investigação?
Eric Jager: Se eu não estivesse convencido de que a Marguerite de Carrouges disse a verdade, acho que não teria escrito o livro. Fiquei convencido e a partir daí quis continuar, naquilo que se tornou num projeto de várias vertentes. No início, senti que era importante conhecer os lugares onde os acontecimentos reais se desenrolaram. Pensar na a paisagem e nos castelos da Normandia, os palácios e o as Igrejas de Paris, ou o que deles sobreviveu.
Visitei várias vezes a França, com a minha mulher – a Peg – que me ajudou na pesquisa como consultora editorial da obra. Batemos à porta de arquivos e bibliotecas na Normandia e em Paris, locais que melhor preservam documentos e livros extremamente valiosos, incluindo crónicas – que serviam como fonte primária, inicial -, como também registos legais, recibos militares. Estas fontes, que chamo de “detalhes internos” estavam todas em latim ou franćês, e fui eu mesmo o responsável pela tradução para o livro.
Consegui ver o manuscrito original do testemunho de Marguerite, que antes me tinha sido facultado numa cópia impressa de 1820. Analisamos também comentários sobre o caso feitos por juristas, comentários de historiadores regionais e populares (que variam bastante), planos arquitectónicos e mapas históricos da época, e ainda textos de ficção pura, que tentam resolver os mistérios com enredos totalmente imaginários… Os documentos originais estão bem preservados e não são difíceis de ler para quem conhece a escrita da época, embora uma lupa ajude. O papel ou pergaminho usado no século XIV era muito resistente, portanto os documentos originais são legíveis. Outras informações surgiram das crónicas, como aquela de Froissart, onde se caracterizam os homens e são fornecidas descrições vívidas sobre as suas aparências. Esta questão surgiu em comentários posteriores, de historiadores franceses do século XIX, o que é um pouco questionável.
As informações que encontrei dizem também alguma coisa sobre as teimosias de Jean de Carrouges, um homem bastante obcecado com um pedaço de terra. Enfim, o meu trabalho tratou-se sobretudo de juntar uma variedade de fontes, e tentar perceber o que era verdade e aquilo que era apenas um boato. Naquele tempo, as pessoas podiam muito bem mentir sobre o que acontecia em privado, mas o que acontecia em público não poderiam falsificar porque teriam havido testemunhas e sofreriam consequências graves.
MHD: Certamente a sua investigação deve ter desvendado alguma informação previamente desconhecida…
Eric Jager: Ao verificar os registos do Parlamento de Paris em comparação com os documentos originais, encontrei pelo menos um grande erro que realmente mudou a história e que nunca havia sido detectado por 200 anos. Encontrei documentos que haviam sido totalmente esquecidos e que não pareciam fazer parte daquilo que os historiadores e estudiosos sabiam sobre o caso. Algumas dessas descobertas ajudaram a preencher pedaços da história e forneceram os desenvolvimentos dramáticos para o enredo.
Por exemplo, um erro num registo transcrito levou muitos estudiosos a acreditarem que a decisão de adiar o duelo – de 27 de novembro para 29 de dezembro – havia ocorrido no final de setembro, mais de dois meses antes do dia marcado. Mas, na verdade, o atraso foi anunciado a 24 de novembro, faltando apenas três dias para o duelo, o que resultou num acontecimento muito dramático.
Ainda mais importante, os historiadores parecem ter dado menos peso ao depoimento de Marguerite do que ao relato de Le Gris sobre as coisas. Existem várias razões pelas quais isso possa ter acontecido – incluindo o facto de que as mulheres simplesmente não eram acreditadas em casos como este. Um detalhe muito importante no seu depoimento, é que ela diz que o Jacques Le Gris primeiro tentou seduzi-la com dinheiro, e quando isso falhou, o seu comportamento tornou-se violento. Essa parte do testemunho foi praticamente ignorada. O livro inclui muitos outros detalhes, e oferece um argumento detalhado para explicar por que o testemunho de Marguerite é o mais confiável.
Quanto aos juramentos que Carrouges e Le Gris fizeram no campo de batalha foram bem documentados, mas não necessariamente nos registos deste caso específico. Sabemos que essas palavras, gestos e cerimónias foram usados por causa de um documento de 1306 muito importante que havia sido promulgado por um antigo rei francês. Filipe IV tentou abolir os duelos e a nobreza disse: “De modo nenhum, queremos manter esta tradição durante muito tempo.”, ao que o Rei respondeu: “Podem ter esses duelos, mas apenas em casos que envolvam crimes, como traição, abuso sexual, assassinato e apenas se for restrito à nobreza.” Então, promulgou um longo decreto que especificava que todas as cerimónias formais poderiam incluir juramentos solenes feitos pelos combatentes antes do duelo. Até três juramentos separados em alguns casos.
MHD: Foi difícil para si ter acesso à documentação? Como foi o contacto com as instituições francesas que preservam estes documentos?
Eric Jager: Na verdade, eu gostaria de especificar que embora muitos pensem que os arquivos regionais fora de Paris são propriedade de estudiosos, essa não é a realidade. Qualquer pessoa poderá visitar os arquivos regionais para pesquisar legados históricos, ou simplesmente para descobrir mais sobre a sua própria história familiar. Historiadores locais e membros de sociedades regionais conduzem pesquisas e escrevem artigos para jornais locais. Alguns deles na Normandia comunicavam comigo através do correio e por isso a investigação não foi tão árdua.
Talvez em outros países, onde existam casos mais ou menos semelhantes ao de Marguerite, seja mais complexo investigar. Porém isso não aconteceu em França. Um dos jornalistas da Normandia possui um terreno que já foi propriedade do Jacques Le Gris, e que restaurou com cuidado e precisão. No local ainda existe um forte normando, portanto bastou juntar a documentação ao ambiente para decifrar um pouco mais daquele período e daquelas pessoas cujas histórias são bastante interessantes e merecem ser conhecidas por todos.
MHD: Durante quanto tempo exatamente esteve envolvido neste projeto?
Eric Jager: O projeto do livro tardou 10 anos, desde o momento em que descobri a história até à publicação final do livro. Só as partes da investigação e escrita demoraram cerca de 4 anos, desde o início do ano 2000 até inícios de 2004, altura em que enviei as minhas revisões finais à editora.
MHD: Quão marcante foi o duelo entre Jean de Carrouges e o Jacques Le Gris para a história francesa?
Eric Jager: O duelo é lembrado por muitos como uma tragédia. Faz parte da história da região da Normandia e até têm festivais onde os entusiastas da esgrima reencenam o duelo. As pessoas vivem perto da história e são fascinadas por ela. Eu mesmo fiquei fascinado e quis ter algumas aulas de esgrima – aconteceu com um especialista ucraniano – de forma a ter uma ideia melhor do que era experimentar um combate frente a frente, corpo a corpo, com uma arma branca.
MHD: Será que nos poderia falar do Jean de Carrouges e do Jacques Le Gris em termos das suas afiliações militares? O que esteve por detrás do duelo além da polémica com a Marguerite?
Eric Jager: Naquela época, o principal motivo pelo qual os homens iam para o campo de batalha era para enriquecerem. Eles podiam capturar alguns materiais como resultado de uma invasão ou podiam capturar prisioneiros valiosos que depois seriam vendidos. Portanto, suspeito que esse foi um dos motivos pelos quais o Jean de Carrouges oferecia-se continuamente para este tipo de duelos. Ele não precisava; não era chamado por nenhum soberano que lhe dissesse que era necessário lutar. Claro que haviam situações nas quais os homens podiam recusar-se a lutar porque eram abastados. As campanhas reais, como aquela para a qual o de Carrouges se ofereceu, carregavam muito prestígio.
O Jacques Le Gris não se apresentou como voluntário para a expedição até à Escócia acompanhado por Carrouges, e é provável, por todas as evidências circunstanciais que possuímos, que ele decidiu ficar para trás. Ele estava confortavelmente instalado na corte do conde Pierre. Ele era, em grande parte, o braço direito do conde Pierre, e não acho que o conde Pierre, o quisesse deixar. No entanto, teria sido totalmente a favor de Carrouges entrar na campanha escocesa porque as chances de voltar eram mínimas, e essa seria uma maneira de se livrar desse cortesão problemático. Carrouges era uma espécie de espinho. Se Carrouges fosse morto numa campanha, as suas terras seriam revertidas por lei para o conde Pierre. Obviamente a Marguerite teria ficado com algumas terras, pois tinha direito a elas, por causa do casamento e por ser viúva. Mas a maioria das coisas do Carrouges seriam revertidas para o conde Pierre, e e depois iria certamente distribuí-las como generosidade pelos seus vassalos mais favorecidos. Portanto, teria sido uma situação ganha para o conde Pierre ver Carrouges morto naquela campanha.
MHD: Alguma coisa que descobriu, mas que não está incluída no livro?
Eric Jager: A família do Jacques Le Gris teve uma forte presença na corte do conde Pierre – como descobri num livro académico publicado e que não consegui incluir no meu livro. Pelo menos dois dos seus familiares também ocupavam cargos influentes na corte.
Depois também descobri que o Jean de Carrouges ainda tinha uma boa posição social uma década após o duelo e pouco antes de sua suposta partida para Nicópolis, conforme atesta um documento que evidencia que o cavaleiro serviu de testemunha num processo judicial em Saint Pierre-sur-Dives, na Normandia, a 7 de janeiro de 1396. Marguerite evidentemente sobreviveu a Jean por mais de duas décadas, até 1419, ou pouco antes, como mostra um outro documento especificando que Henrique V concedeu a posse das suas terras ao seu filho, Robert de Carrouges.
Marguerite pode ter tido uma meia-irmã mais nova, Jeanne de Thibouville, nascida do casamento entre o seu pai, Robert de Thibouville e a sua segunda mulher, Marie de Clere. Dois registos até então desconhecidos sobre a vida adulta de Adam Louvel, o cúmplice de Le Gris, foram encontrados por Louis de Carbonnières, professor de história do direito na Universidade de Lille. Os registos recém-encontrados mostram que Louvel foi preso em conexão com o caso em 1388, e novamente em 1389, mas libertado ambas das vezes. Finalmente, a construção do campo de batalha em Saint-Martin-des-Champs foi supervisionada pelo carpinteiro real Jacques de Chartres, citado num registo que especifica o pagamento pelo tesoureiro do rei por este trabalho.
MHD: Agora que já conhecemos a história, será que nos poderia dizer como foi trabalhar como consultor no filme “O Último Duelo”, de Ridley Scott e o que pensou quando leu pela primeira vez o argumento escrito por Nicole Holofcener, Ben Affleck e Matt Damon?
Eric Jager: Caramba, o argumento era espetacular. No primeiro rascunho, para o qual eu tinha alguns comentários e sugestões, era brilhante. Eu estava um pouco nervoso para ler, mas igualmente animado. E quando digo nervoso, quero dizer no sentido de que pensei que isto realmente vai ser um filme, portanto eu preciso concentrar-se no que estou a fazer. Fiquei logo muito impressionado com a história de três partes. A forma como foi desenvolvida, a forma como mudava um pouco a cada minuto, e depois a terminar com a incrível história de Marguerite. Claro que olhei para o argumento muito em termos de detalhes históricos, e tentar perceber era plausível e se o diálogo funcionava nesse sentido. Haviam algumas coisas menores em relação à linguagem, onde mudei uma palavra como “responsabilidade” para “dever”, que é uma palavra normanda que herdamos do inglês. Fiquei muito satisfeito quando li o segundo rascunho do argumento e vi que a maioria das minhas sugestões havia sido adotadas.
De maio a novembro de 2019 fiz também muitas pesquisas para a Nicole, o Ben e o Matt. Fiz pesquisas ao nível do guarda-roupa, dos rituais fúnebres e até referentes à terminologia militar. No rascunho anterior, não havia qualquer referência aos juramentos feitos pelos dois combatentes pouco antes da luta, e acabei por relembrá-lo aos argumentistas. Eu ajustei alguns dos diálogos, mudei o ritmo de uma linha… Quando vemos no trailer a Marguerite – interpretado pela Jodie Corner – a fazer um juramento fiquei sem palavras. Os juramentos são o mais importante desta história, porque percebemos o mundo medieval. Os juramentos faziam parte do procedimento legal e do espetáculo do duelo. Não havia muito mais a dizer naquele momento, quando vi o segundo rascunho, o argumento estava em ótima forma. Espero que as pessoas vejam o filme para perceber o quão completo mantém-se em comparação com o material que adapta.
O Último Duelo | Trailer legendado em português
“O Último Duelo” tem estreia marcada em Portugal para o próximo dia 28 de outubro. “Casa Gucci”, também de Ridley Scott estreia menos de um mês depois, a 25 de novembro. Ambos os filmes prometem ser fortes candidatos aos prémios da temporada 2021/2022.
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