Uma Mulher Fantástica, em análise
“Uma Mulher Fantástica” é uma história de resiliência feminina que, após ter ganho um Urso de Prata na Berlinale, é o filme que vai representar o Chile na corrida ao Óscar de Melhor Filme Numa Língua Estrangeira.
No meio de “Uma Mulher Fantástica”, o mais recente filme do cineasta chileno Sebastián Lelio, surge uma imagem que serve de síntese a toda a performance em volta da qual o filme se desenvolve. Nesse plano, com uma composição de simetria quase perfeita, Marina, interpretada por Daniela Vega, está sozinha na parte de trás de um autocarro. Os seus braços estão estendidos para a frente e cada mão está agarrada a um varão de apoio. No seu gesto e postura, conseguimos percecionar a tensão de músculos, mas é a expressão desta mulher que realmente ancora a imagem. Na sua face a atriz usa uma expressão de hostilidade defensiva, como que uma máscara protetora. Nos seus olhos vemos todo um oceano de humilhação e fúria metodicamente contida, sendo ela como uma bomba armada, cuja pose demarca o esforço titânico de não explodir.
Tal dinâmica de fúria reprimida caracteriza grande parte da prestação de Daniela Vega ao longo do filme, mas o grande milagre deste feito interpretativo é toda a humanidade e complexidade emocional que a atriz consegue sugerir através de pequenas variações na sua armadura expressiva. Quando ela se vê encurralada entre a espada e a parede, arriscando ser presa se recusar submeter-se a um humilhante exame físico, Vega deixa que a impetuosa raiva se dissipe, ficando à mostra o terror. Quando tem oportunidade de deixar cair as suas defesas e dizer adeus a um amado, as lágrimas que pintam a sua face parecem brotar tanto da dor como da raiva. Quando ela está em palco e canta, a sua expressão amolece e vemos Marina ser consumida pelo regozijo da performance, mas a sua fúria ainda existe como um fantasma no canto do olho.
Em suma, se mais nenhum mérito tivesse, “Uma Mulher Fantástica” seria à mesma um filme estupendo pelo facto de nele se poder encontrar a prestação de Vega. Felizmente, esta é uma obra de inúmeras virtudes, que vão muito além do trabalho da sua atriz principal ou da nobreza das suas intenções enquanto crítica social. Essa componente social e política é, no entanto, impossível de ignorar pois Marina e a atriz que a interpretam são mulheres transgéneras. Esta é, aliás, uma história de sistemática humilhação sobre a resiliência necessária para sobreviver a essas provações. O filme não começa, contudo, nos píncaros do sofrimento. Verdade seja dita, “Uma Mulher Fantástica” começa de um modo surpreendentemente casual, retratando o aniversário de Marina e o modo como ela o passa ao lado de Orlando, seu namorado e um homem mais velho e abastado que é dono de uma fábrica de têxteis.
Ele vai buscá-la a um hotel onde Marina, que aspira ser cantora de ópera, está a cantar e depois vão os dois ter um jantar romântico num restaurante chinês. São feitas promessas de uma viagem celebrativa a ser feita no futuro e, chegados ao apartamento que os dois vivem juntos com uma cadela dada por Orlando a Marina, o casal faz amor. Quer seja em escolhas de vestuário, trabalho de câmara ou performance, estes momentos são marcados por uma doce felicidade que nunca é demasiado enfatizada. Evocando o mesmo tipo de observação modesta e acutilante que já havia mostrado no seu brilhante filme “Gloria”, Lelio é capaz de esboçar os laços afetivos destes dois amantes em pouco tempo. Tal capacidade sintética é necessária pois, durante a noite, Orlando sente-se mal, Marina leva-o apressadamente ao hospital e, antes de o sol nascer, ele está morto.
Daí por diante, o filme torna-se numa espiral de desgraças que se precipitam sobre Marina de forma tão cruel como previsível. Devido a lesões que Orlando sofreu ao cair nas escadas do prédio durante o tempo em que Marina demorou a fechar a porta de casa, ela é confrontada pela polícia. Uma agente que, inicialmente, se apresentava como solidária, depressa revela ser uma impiedosa ave de rapina cheia de preconceitos e o poder para destruir esta mulher inocente e enlutada. Por sua vez, a família de Orlando, com a exceção do seu irmão, mostra-se crescentemente intolerante para com Marina. Ela é demasiado jovem, de classe baixa e, devido à sua identidade sexual, um monstro aos seus olhos. Para o filho do falecido e sua ex-mulher, não haveria nada melhor do que simplesmente apagar por completo o último capítulo na vida do patriarca. Eles começam por tirar a Marina o apartamento, mas logo se segue a cadela, a possibilidade de ir ao funeral de Orlando e até as mais básicas dignidades.
Este tipo de estrutura narrativa é já um clássico dentro do cinema de temática LGBT. Vemos um rasgo de felicidade doméstica, seguido de uma crise pessoal e um encadeamento de humilhações até que uma mostra de impetuosidade agressiva proporciona um final tão ambivalente como triunfante. Esta é uma convenção que já cheira a mofo, mas isso não implica que seja necessariamente resultante em obras menores. De facto, Lelio e companhia elevam-se acima do esqueleto prosaico do guião que, sem contar com a sua estrutura, é um trabalho excecional. Alguns rasgos de fantasia e aparições espectrais dão um estilo inesperado à história, mas é no modo como Lelio nunca sente necessidade de explicar a sua protagonista ao mesmo tempo que faz subentender todo um historial de antigas mágoas que se encontra mestria deste grande realizador.
Para Marina, é perigoso mostrar vulnerabilidade, algo que ainda torna mais preciosa a sua relação com Orlando. Depois de saber da morte do seu amado, ela não reage imediatamente. Na verdade, ela dirige-se até uma casa-de-banho e fecha-se num cubículo onde a câmara não entra. Por entre o espaço entre a porta e o chão vislumbramo-la de joelhos a chorar. Lelio não ousa violar os limites da dignidade de Marina e tem a inteligência de subordinar a ilustração das agressões, pequenas e grandes, sentidas pela protagonista à sua atriz principal, que certamente terá ido buscar muita inspiração às suas experiências reais. Deste modo, o drama nunca é forçado e o filme desenrola-se com uma qualidade orgânica e dolorosa, capaz de evocar empatia sem a exigir aos gritos. “Uma Mulher Fantástica” apaixona-nos pela sua mulher titular e, chegado o já mencionado triunfo final, apenas os espetadores mais carrancudos espetadores poderão dizer que não sentiram a tentação de se levantarem e aplaudir de pé os esforços musicais de Daniela Vega como Marina.
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Uma Mulher Fantástica, em análise
Movie title: Una Mujer Fantástica
Date published: 22 de December de 2017
Director(s): Sebastián Lelio
Actor(s): Daniela Vega, Francisco Reyes, Luís Gnecco, Aline Küppenheim, Nicolás Saavedra, Amparo Noguera, Trinidad González, Néstor Cantillana, Antonia Zegers, Sergio Hernández
Genre: Drama, 2017, 104 min
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Cláudio Alves - 85
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José Vieira Mendes - 80
CONCLUSÃO
“Uma Mulher Fantástica” é filme que merece todo o mérito e aclamação que tem recebido desde a sua estreia na Berlinale. Vega é formidável e Lelio é um brilhante realizador criador e observador de personagens complexas e perfeitamente inesquecíveis.
O MELHOR: A prestação eletrizante de Daniela Vega.
O PIOR: O modo como o filme praticamente só mostra Marina em tempo de crise é compreensível, mas frustrante num panorama em que é difícil encontrar histórias sobre indivíduos trans que não sejam odisseias de contínua vitimização. Como espetadores, sentimos que a queremos conhecer melhor e que a perspetiva do filme é limitada, estando a sua vida artística e profissional quase sempre relegada à periferia da narrativa. Enfim, um filme não pode ser tudo e querer contar todos os aspetos da existência das personagens em si contidas.
CA