"Vermiglio" | © Leopardo Filmes

Vermiglio, a Crítica | Maura Delpero assina a melhor antestreia da Festa do Cinema Italiano

Do Festival de Veneza à Festa do Cinema Italiano, “Vermiglio” de Maura Delpero é um dos grandes filmes do ano. Entre muitas honras, este drama de época representou a Itália na corrida ao Óscar para Melhor Filme Internacional. Infelizmente, não foi nomeado.

Algures nos Alpes italianos, no inverno de 1944, a vila de Vermiglio acorda para novo dia. Vislumbramos a matina gélida na casa do professor local, Cesare, um homem de saber livresco e autoridade moral cuja esposa espera outro filho. Ele já tem muitos, estando a casa da família Graziadei a rebentar pelas costuras com tanta gente. Esperar-se-ia um ambiente caótico em tais preparos, mas os ritos quotidianos que a câmara observa são marcados pela paz, de espírito e de tom, transmitindo uma ideia meio ilusória de harmonia. Esta domesticidade pode parecer saída de um qualquer quadro nostálgico, mas a história das personagens não será embevecida por idealismos alguns.

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Assim começa “Vermiglio” de Maura Delpero, quase como uma coleção de pinturas oitocentistas sobre uma comunidade perdida no tempo. A ação decorre em plena Segunda Guerra Mundial, mas é difícil perceber isso sem o contexto conversacional e o rugido de aviões a sobrevoar o território, tão pacata é a vida destes aldeões alpinos. O trajado certamente parece saído do século anterior e a arquitetura remonta a tempos ainda mais antigos. Também os costumes seguem a regra tradicionalista, por muito que o professor Graziadei tente educar a mocidade para as realidades do século XX durante um dos seus capítulos mais negros. Tanto assim é que, quando dois soldados desertores aparecem em Vermiglio, Cesare é quem convence os vizinhos a aceitarem a sua presença.

Cinema pastoral com valores humanistas.

vermiglio critica
© Leopardo Filmes

Fugidos do combate, eles são jovens traumatizados que a comunidade tem dificuldade em entender, tão distantes estão eles do mundo virado do avesso lá fora, lá longe. Mas lá os esforços do professor têm os seus frutos e os homens tornam-se parte do dia-a-dia de Vermiglio nesses meses de frio feroz, tão belissimamente registado pela câmara que a audiência quase consegue sentir o ar gelado a emanar do ecrã. Nesse idílio pintado alvo pela neve, o amor desabrocha entre Pietro, o soldado Siciliano, e Lucia, a filha mais velha dos Graziadei. E qual rosa de inverno, fica a dúvida se a flor consegue sobreviver ao degelo da paisagem, a chegada da Primavera pronta a tornar a montanha branca num esplendor verde.

“Vermiglio” faz rima com as sinfonias de Vivaldi e estrutura-se consoante o passar das estações, do Inverno ao Outono, passando por ciclos de morte e regeneração que tanto afetam as vidas humanas como a natureza. Mais do que cinema digno de postais turísticos, esta é uma meditação pastoral, cheia de franqueza e muita curiosidade, capaz de ser um mural coletivo e um retrato do indivíduo em simultâneo. Delpero é uma contadora de histórias generosa, dando destaque às muitas figuras da família central. Também é uma retratista de grande lucidez, capaz de demonstrar grande carinho pelas personagens sem deixar de iluminar o seu lado mais feio. Essa complexidade não é uma contradição em “Vermiglio” – é um milagre.


Outros cineastas poderiam ver a história de Lucia como uma tragédia, um eco de muitos contos sobre raparigas que se apaixonaram por soldados estrangeiros e tudo perderam quando eles regressaram às suas origens. No entanto, o melodrama é aqui mitigado pelos silêncios e os espaços vazios, transições elípticas e reticências que deixam os desenvolvimentos mais sentimentais da narrativa fora de cena. Cesare, por seu lado, é esboçado como a voz da razão e um homem de vícios particulares, suas noções de superioridade tão justificadas como cruéis. A matriarca, por sua vez, pode parecer cruel, mas há pragmatismo nascido da perda na sua atitude. Os meninos são rebeldes a debater-se com imagem-própria, a filha mais nova sente a pressão nascida das expetativas paternas e a rapariga do meio lida com desejos proibidos pela fé.

Ninguém é um cliché ou um arquétipo, uma personagem-tipo facilmente resumida ou julgada. O carinho da realizadora também se manifesta numa vontade de esconder os momentos mais lacerantes da história, confiando no espectador para deduzir o que não foi visto através de pistas comportamentais, detalhes que são evidentes sem serem explícitos. É claro que, não é por não os vermos que esses acontecimentos narrativos magoam menos. O outro lado da moeda é que, se a miséria nunca é explorada no máximo potencial, também a alegria nunca será tanta que inebria o espectador. Em “Vermiglio,” o bom e o mau de cada dia andam de mãos dadas e, parte de reconhecer a beleza presente passa por entender estas dinâmicas da condição humana.

Um dos filmes mais deslumbrantes do ano!

vermiglio critica
© Leopardo Filmes

Dito isso, parece-nos erróneo falar de Delpero somente no contexto da sua escrita e direção de atores. Como realizadora, a qualidade mais evidente no trabalho da italiana é a disciplina formalista que ela traz a todo o projeto, com “Vermiglio” a evidenciar-se como o píncaro do brio audiovisual. Com a ajuda do diretor de fotografia russo Mikhail Krichman, Delpero torna a paisagem noutra personagem, uma presença que tanto transmite conforto como a carícia cortante de uma brisa gelada. As cores mudam consoante a estação, mas toques de azul e vermelho contrastam sempre com o mundo natural, revelando paixões mal-escondidas e orientando o olho do público. Noutras passagens, é o movimento ou sua ausência que mais marcam a fita.

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Apesar da dimensão épica que esta narrativa de doze meses alcança, a câmara raramente deixa a estabilidade do tripé em “Vermiglio.” Esta abordagem faz com que os poucos momentos em que a imagem se mexe tenham o impacto de uma bomba a rebentar no cinema. Ora num casamento ou num adeus, numa viagem de barco ou num instante de resignação, o inquieto psicológico e espiritual reflete-se numa inquietação de termos puramente cinematográficos. Isto é trabalho de uma mestra da sua arte, herdeira do legado de Ermanno Olmi e outros cineastas Italianos que foram além do Neorrealismo para descobrir algo mais verdadeiro que a verdade, entre a expressividade de uma ópera e a cerimónia regimentada de uma missa. Não admira que, perante tal feito, o júri de Veneza tenha dado a Delpero o Leão de Prata ou que o comité de seleção tenha escolhido “Vermiglio” para representar Itália nos Óscares. Este filme merece isso e muito mais.

Vermiglio, a Crítica
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Movie title: Vermiglio

Date published: 17 de April de 2025

Country: Itália

Duration: 119 min.

Director(s): Maura Delpero

Actor(s): Tommaso Ragno, Roberta Rovelli, Martina Scrinzi, Giuseppe De Domenico, Carlotta Gamba, Orietta Notari, Santiago Fondevila, Rachele Potrich, Anna Thaler, Patrick Gardner, Sara Serraiocco, Leone Gubert

Genre: Drama, História, 2024

  • Cláudio Alves - 90

CONCLUSÃO:

Num estilo austero que ainda consegue ser esplendoroso, Maura Delpero explora o potencial de um cinema pastoral realista em cenário alpino. “Vermiglio” começa como uma pintura Romântica abençoada com vida e movimento. Gradualmente, revela-se como um poema humanista sobre perseverança e a condição comum a todos nós perante uma História e uma natureza revolvendo-se em ciclos de destruição e regeneração, morte e vida nova. É imprudente dizer tais coisas sobre um filme tão recente, mas podemos estar perante a primeira obra-prima de uma mestra do cinema italiano para o século XXI.

O MELHOR: A pincelada de vermelho numa paisagem branca com sombras azuis, a paixão juvenil manifesta como uma rosa rubra a florescer por entre a neve. Essa e outras imagens fazem de “Vermiglio” um dos filmes mais belos do cinema europeu recente. Uma salva de palmas para Mikhail Krichman!

O PIOR: Por muito que admiremos a delicadeza com que Delpero conta a história de “Vermiglio” e da família Graziadei, alguns espectadores julgarão fria esta abordagem. E dessa frieza poderá vir dessatisfação, uma qualquer incapacidade de sentir as dimensões mais emocionais da fita.

CA

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