Fernanda Montenegro é D. Nina ou Joana da Paz. ©Conspiração Filmes/Big Pictures/Divulgação

Vitória, a Crítica | Fernanda Montenegro e a janela indiscreta de Copacabana

Mesmo depois da sua breve aparição no filme brasileiro do Oscar, a veterana atriz Fernanda Montenegro (95 anos) é agora a notável protagonista de “Vitória”, um filme da dupla Andrucha Waddington e Breno Silveira, sobre a história de uma idosa que ajudou a combater o tráfico e a violência no Rio de Janeiro (RJ).

Aos 95 anos, Fernanda Montenegro é a grande estrela de “Vitória”, um filme feito à sua medida, dirigido pela dupla Andrucha Waddington (genro e marido de Fernanda Torres, com quem já trabalhou em “Casa de Areia”, em 2005) e Breno Silveira (“Gonzaga-De Pai para Filho”, em 2012), que curiosamente estreou em simultâneo esta semana, nas salas portuguesas e brasileiras. O filme conta uma história real de Joana da Paz (interpretada por Fernanda Montenegro e que no filme se chama D. Nina), ex-empregada doméstica e massagista-terapeuta que, em 2005, com uma pequena câmara de vídeo na mão, da sua janela no seu pequeno apartamento, no bairro de Copacabana — a praia infelizmente não é apenas a ‘rainha do mar —, virado para a favela (Ladeira dos Tabajaras, um local ainda hoje pouco recomendável aos turistas), registrou vários crimes, relacionados com o narcotráfico.

Ao completo ou melhor intencional desinteresse do batalhão da polícia local, D. Nina/Joana, sujeita muitas vezes aos tiroteios e aos perigos das ‘balas perdidas’ e assaltos, acabou por partilhar os seus filmes, com Fábio Gusmão (interpretado por Alan Rocha), o jornalista do Extra, dando origem, em conjunto com o departamento de investigação da Polícia Civil, a uma grande operação de combate ao narcotráfico no RJ: as videocassetes foram usadas como provas e denúncias, que resultaram na prisão de vário moradores do morro, soldados e polícias militares envolvidos. A idosa ficou conhecida como Vitória da Paz, pelos seus esforços de combate à violência e tráfico de droga carioca, onde estão inclusive envolvidas muitas crianças (pivetes), como vimos em muitos filmes brasileiros como “Central do Brasil” ou “Cidade de Deus”. 

Vitória
A incrível interpretação de Fernanda Montenegro, com Alan Rocha. ©Conspiração Filmes/Big Pictures/Divulgação


Uma reportagem de jornal que deu livro e filme

Além da ‘reportagem bombástica’ publicada então no Extra — o jornal sensacionalista do RJ, do Grupo O Globo, ao estilo Correio da Manhã — deu origem a esta espécie de versão de “A Janela Indiscreta” em versão Copacabana, não tão sofisticado como o filme de Alfred Hitchcock e obviamente com uma história bastante mais simples e com menos suspense, foi feito também um livro intitulado “Dona Vitória Joana da Paz” (Planeta), da autoria do jornalista Fábio Gusmão (Fábio Godoy no ecrã) e é nele que o filme realmente é inspirado. D. Joana foi rebatizada em 24 de agosto de 2005, como ‘Vitória’, dia em que o jornal publicou um caderno especial com a tal reportagem. Nesse mesmo dia, a idosa deixou o imóvel que comprou com as suas economias, onde viveu durante 36 anos, para ingressar no programa de proteção a testemunhas, vivendo sob anonimato forçado durante cerca de 17 anos. A sua verdadeira identidade foi revelada apenas há muito pouco tempo. A senhora morreu, em Salvador da Bahia, no início do ano passado, aos 97 anos, resultado de um acidente vascular cerebral e obviamente não chegou a ver o filme pronto.

Porém, “Vitória” começou a ser produzido muito antes, sempre com a preocupação de evitar informações que facilitassem a identificação ou localização aos criminosos ou evitando a possibilidade de alguma possível vingança sobre a senhora. Um exemplo, que aliás tem sido bastante falado, por alguns dos críticos e espectadores, no que diz respeito às questões do politicamente correcto ou da cultura de cancelamento, — a questão da descriminação dos negros é muito forte e uma realidade, ainda no Brasil —  é que D. Vitória era uma mulher negra, e Fábio, um jovem jornalista branco, mas isso inverte-se completamente no filme. Aliás, como se mudaram os nomes das personagens e nome do local onde tudo aconteceu. 

Vê trailer de “Vitória”


Uma homenagem ao realizador falecido

O filme apesar de ter um registo por vezes bem-humorado, graças à brilhante interpretação de Fernanda Montenegro, tem no seu fundo além de algo trágico na história que envolve também, um assassinato a sangue-frio, de uma mulher em plena rua, possui ainda uma certa ironia do destino, quanto aos seus criadores e origem. A ideia de produzir o filme veio do casal Paula Fiuza argumentista) e Breno Silveira — a quem este último, o filme é dedicado — sócios de Andrucha Waddington na produtora Conspiração Filmes. Mas em 2022, Breno sofreu um infarto durante as filmagens e, tempo depois, morreu. O seu amigo e sócio, Andrucha assumiu a realização para terminá-lo e o filme é duplamente uma homenagem ao realizador e a nossa D. Vitória — uma admiradora incondicional de Fernanda Montenegro e de “Central do Brasil” —, que faleceu também dois meses depois que terminaram as filmagens, que viveu essa obsessão pela justiça.

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D. Nina (Fernanda Montenegro) vê e filma atravês dos estores. ©Conspiração Filmes/Big Pictures/Divulgação


Uma história de solidão e violência

“Vitória” é uma história de violência, mas é igualmente, um filme sobre a solidão dos idosos — curiosamente o RJ é segundo as estatísticas a melhor cidade para se envelhecer —, uma saga de sobreviventes (idosos, crianças, trans e também traficantes) sobre todos aqueles que não encontram um lugar no mundo, nem para onde ir, um retrato da miséria, pobreza e violência carioca, que estão cada vez mais difíceis de travar no Brasil e com tendência para aumentar.

O elenco é escasso, porque tudo gira à volta da D. Nina, a personagem de Fernanda Montenegro, mas Alan Rocha no papel do jornalista que tenta travar o ímpeto da idosa, a actriz-compositora trans Linn da Quebrada na terna vizinha e amiga, a decidida delegada policial Laila Garin, e com destaque para o estreante rapazinho Thawan Lucas no papel do ‘pivete’ Marcinho, fazem interpretações magníficas no filme, encarnando na perfeição, algumas personagens típicas do controverso e violento quotidiano carioca. A dupla realização de Breno e Waddington, aparece-nos sem descontinuidades, tornando-se absolutamente competente, apurada e concentrada, tanto nos ambientes do espaço limitado, simples, descolorido, antiquado e sombrio do apartamento de D. Nina (Montenegro), como no exterior da ladeira, colorido e luminoso, mas violento e pobre, que a idosa vê através das persianas da sua janela.

Na sessão que assisti no RJ, aliás numa das novas salas do CineCarioca José Wilker — numa grande homenagem ao conhecidíssimo actor, em Portugal e no Brasil e também grande cinéfilo, já falecido  — nas icónicas Casas Casadas nas Laranjeiras, ao lado da sede também da RioFilme, não estava completamente cheia, nem houve a mesma emoção ou aplausos quando da estreia de “Ainda Estou Aqui”, mas toda a gente saiu impressionada com a interpretação da enorme Fernanda Montenegro.

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O jornalista Fábio (Rocha) ajuda D. Nina (Montenegro) nas denúncias. ©Conspiração Filmes/Big Pictures/Divulgação


Um filme a caminho dos Oscar 2026

A interpretação de Fernanda Montenegro, provavelmente a última no cinema da grande atriz, que está com 95 anos e trabalha em pleno nos filmes, diz que estes já lhe exige um grande esforço, ‘cinema pede físico, pede fôlego’, disse ela, é absolutamente incrível e deslumbrante. Ao ponto da Sony Pictures, que distribui internacionalmente este “Vitória”, — a nacional é feita novamente pela Big Pictures, por representação — tal como fez com o Óscar de Melhor Filme Internacional 2025, já está a trabalhar na promoção da veterana atriz e deste filme para os candidatar para o ano. Apesar dos seus 95 anos, Fernanda Montenegro tem andado numa verdadeira roda viva, para além da estreia do filme, tem-se dedicado com sessões esgotadas, à leituras de textos e poesia de autores brasileiros, em vários locais da capital carioca, incluindo a Academia Brasileira de Letras

Vitória

Movie title: Vitória

Movie description: Baseado numa história real, o filme conta a história de Nina, uma mulher de 80 anos que, sozinha, desmantelou um esquema de tráfico de drogas em Copacabana. Nina (Fernanda Montenegro) é uma mulher idosa que vive sozinha e sente-se angustiada com a crescente violência no seu bairro. Apesar da relutância dos vizinhos, decide filmar a movimentação dos traficantes de drogas da sua janela, na esperança de colaborar com a polícia. Depois de meses a registar atividades suspeitas, a sua iniciativa atrai a atenção de um jornalista, que se aproxima de Nina e se propõe a apoiá-la na sua missão.

Date published: 14 de March de 2025

Country: Brasil, 2025

Duration: 112 minutos

Director(s): Andrucha Waddington, Breno Silveira

Actor(s): Fernanda Montenegro, Alan Rocha, Linn da Quebrada Thawan Lucas, Laila Garin

Genre: Drama

  • José Vieira Mendes - 85
85

Conclusão:

“Vitória”, protagonizado por Fernanda Montenegro e realizado pela dupla brasileira Andrucha Waddington e Breno Silveira, será talvez a sua interpretação mais apoteótica que vai coincidir provavelmente com a despedida da veterana actriz do cinema, aos 95 anos. O filme conta precisamente a história real de Joana da Paz (no filme é D. Nina), uma idosa muito corajosa  que se expôs a uma rede de narcotráfico no Rio de Janeiro, pois sofria, além da solidão, com a violência vista da sua janela, policiais ineficientes e vizinhos pouco compreensivos. Porém, jamais a D. Nina (Fernanda Montenegro) é retratada como uma vítima da situação. A personagem é pura força física e de carácter apesar da idade, limitações físicas e condição social. Mesmo numa história real, cuja a trama que vai se desenvolver lentamente, já mais ou menos conhecida — pelo menos pelo público brasileiro — “Vitória” é um filme que nos consegue surpreender, quanto mais não seja, pela clareza das violentas situações gravadas pela câmara da idosa através dos estores da sua janela. É curioso como nos sentimos tão chocados e a nossa indignação é tão forte como a das personagens. E depois temos Fernanda Montenegro, que realmente é uma ‘actriz do outro mundo’, que sabe tanto fazer-nos sorrir como comover. Incrível!

JVM

Pros

A brilhante interpretação de Fernanda Montenegro, aliada a um grande mérito do argumento de Paula Fiuza (com colaboração de Breno Silveira, que faleceu logo no  início da rodagem do filme), que nunca nos faz cair na história da ‘velhinha coitadinha’. Pelo contrário…

Cons

Algumas críticas no que diz respeito à realidade de que, D. Vitória era uma mulher negra, e Fábio, um jovem jornalista branco. Isso inverte-se completamente no filme, aliás como se alteraram os nomes das personagens e nome do local onde tudo aconteceu.

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