WeCrashed minissérie, primeiras impressões
“WeCrashed” é um conto de fadas tecnológico tão eloquente e snobe, que é impossível não ficarmos apanhados com a megalomania, narcisismo, espiritualidade e paixão de duas personalidades maiores que a própria vida. Leto e Hathaway oferecem-nos 47 biliões de motivos para ficarmos viciados nas suas personagens eletrizantes!
Certamente que já ouviram falar de unicórnios, aqueles animais místicos em forma de cavalo com um grande chifre em espiral no meio da cabeça, comumente entendidos como um raro e precioso amuleto da sorte. O que provavelmente não saberão, é que esse mesmo termo é igualmente aplicado a todas as startups do ramo tecnológico, que obtenham uma avaliação superior a mil milhões de euros ao fim da primeira ronda de investimentos, sem as suas ações estarem ainda cotadas em bolsa. O Facebook é a amostra mais badalada de uma empresa com esse perfil, que Ana Pimentel define como “um cocktail de dinheiro, inovação, métricas, potencial e risco”. Curiosamente, esta crónica de loucura capitalista romanceada por dois egos galáticos, já andava a ecoar nos ouvidos do mundo através do famoso podcast investigacional de David Brown, que Lee Eisenberg (“O Escritório”) e Drew Crevello (“Grudge 2”) convertem agora para televisão com carradas de atrevimento, excentricidade e muita alma. E se pensam que “WeCrashed” é mais um daqueles lugares comuns nesta onda vogante de ficcionar relatos de áudio só porque sim, podemos já afirmar sem reservas que estamos perante algo especial, que nos deixa hipnotizados com a revigorante conversa fiada de dois bazófias extremamente competentes a venderem as suas aldrabices ao coração um do outro, e à nata de Wall Street, enquanto sobem a escadaria do estrelato da noite para o dia com pompa e circunstância.
“Tu és uma supernova”. É com esta visão endeusada do seu marido que “Rivka” ou Rebekah Paltrow Neumann (Anne Athaway) massaja o intratável superego de Adam Neumann (Jared Leto), enquanto a mesa de acionistas vota uma moção de censura para o afastar da direção da “WeWork”, depois de um artigo difamatório arrasar a credibilidade da empresa nas vésperas de entrar na bolsa com uma IPO (Oferta Pública Inicial). A prolepse sensacionalista funciona às mil maravilhas com o indiscreto chamariz dos fatinhos que cheiram a dinheiro para quem se interessa pela temática financeira, mas Eisenberg e Crevello foram astutos em entender que o seu ganho pão estaria em persuadir o espetador a empatizar com dois predadores de ideias com uma força estratosférica para seduzir. Assim, após um breve vislumbre faustoso do casal Neumann no pináculo da sua socialite, que nos dá logo um cheirinho da persona libertina de Adam – este ser positivado pelo lema do copo meio cheio, que não se preocupa com o que veste ou se está sequer calçado, servindo-se das pessoas sem elas perceberem que estão a ser usadas, e no final ainda ser idolatrado como um “Jesus Cristo Superestrela”….Assim nos é pintado o ex-oficial da marinha israelita, que nasceu num “kibutz” (coletividade comunitária à qual se refere constantemente), e que nos seus tempos solitários de imigrante americano, era um daqueles inventores ambulantes com um paleio meio descarado a tentar impingir bodies de bébé e saltos dobráveis como o “Santo Graal” das inovações.
E quem melhor do que Leto para vestir a conhecida pele do figurino hippie encapotado numa mente em esteróides com um sotaque arábico em ponto rebuçado, que o próprio admitiu por vezes deixar escapar para o lado italiano devido à sua anterior encarnação de Paolo Gucci em “Casa Gucci”. Mas a intepretação do roqueiro americano é praticamente imaculada enquanto Adam Neumann, que Leto estudou ao detalhe em cada trejeito e pose como se respirasse pelos seus poros. E por muito que a sua presença seja esmagadora, ainda existe espaço para a sua cara metade rutilar o metro quadrado com a sua aura yogi-vegan-guru, que Hathaway tão fervorosamente mimetiza de Rebekah, afinal de contas, por detrás de um grande homem existe sempre uma grande mulher. Aliás, é justamente pelo ângulo amoroso que os criadores de “WeCrashed” fazem, digamos, esta estupenda psicanálise do que foi a pirueta bilionária da “WeWork” no papel quadriculado, que juntam Leto e Hathaway de uma forma absolutamente memorável. Curiosamente, Hathaway refere que nunca conseguiu conhecer Leto fora da sua personagem durante os seis meses de gravações, apesar de terem estabelecido uma bonita relação. E isso vê-se e sente-se na química estonteante que os dois emanam em cada cena partilhada, mesmo quando o argumento nos leva para o inicio da relação, com uma Rebekah defensiva e sem pachorra para pavões convencidos a ripostar cordialmente à letra perante as investidas persistentes de um Adam a querer ser engraçadinho para impressionar. De facto, não raras vezes damos por nós a rir de situações absurdas ou até moralmente reprováveis devido a esta personalidade gozona e mordaz de Adam, que empresta à trama uma qualidade “dramady” estranhamente gratificante.
É por isso que a toada insolente de “WeCrashed” é tão eficiente e voraz em extasiar-nos com uma montanha russa de estímulos, que nos apanham na curva sem estarmos à espera, como se Adam e todos aqueles que se cruzam no seu caminho fossem sugados para um vórtex de casualidades estapafúrdias com sentido. Basta ver como Adam conhece o que viria a ser o seu parceiro de negócio na “Greendesk”, Miguel McKelvey (Kyle Marvin), começando por confundir o seu nome com o do seu local de trabalho (Jordan Parnass), antes de este lhe oferecer um escritório numa arrecadação e posteriormente o convencer a fazer uma direta para criar um portefólio da sua ideia de arredamento de espaços em coworking ao senhorio. Isso de facto aconteceu, e foi Mckelvey quem arquitetou todo o projeto da “WeWork”, mas Marvin, apesar de enriquecer a narrativa com uma dimensão humana mais terrena e sóbria que Adam, é relegado para a sua sombra, um pouco à semelhança do que já vimos em outros biópicos do género, porque a lupa está virada para o quarto de Adam e Rebekah. No entanto, é este tridente pioneiro quem inflama a vibe febril e desenfreada de empreendedorismo desmedido, intoxicando-nos com os seus carismas e crenças indestrutíveis. Assim começa “WeCrashed” com um energético e burlesco cocktail de aromas e sabores explosivos, que nos envia para uma galáxia de apetites monstruosos numa indelével jornada de exploração, introspeção e contemplação pelos altos e baixos de quem se atreve a sonhar na máxima intensidade.
“WeCrashed” é uma das minisséries mais controversas do momento, muito por culpa das portentosas interpretações de Jared Leto e Anne Athaway. Já podem visualizar os seis de oito episódios na plataforma da AppleTV+.
Miguel Simão